A Criação do Protocolo Específicos do Direito à Nacionalidade e à erradicação da apatridia pela União Africana

Vinicius Carvalho de Mattos

Resumo

O presente artigo busca compreender a importância do Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos relativo aos Aspectos Específicos do Direito à Nacionalidade e à Erradicação da Apatridia na África, criado pela União Africana (UA), em fevereiro de 2024. Este protocolo visa expandir a jurisdição continental no que diz respeito a este assunto e elaborar estratégias de salvaguarda para pessoas apátridas e afetadas pela falta de documentação. Pretende-se elucidar os motivos da apatridia no continente, abordando o processo de colonização europeia, e argumentando que o estabelecimento de fronteiras e a consolidação dos Estados no período pós-colonial criaram um espaço que propiciou o não reconhecimento das nacionalidades de determinados grupos, tornando-os apátridas.

A Colonização sobre o Continente Africano

Compreender o processo de colonização europeia sobre o continente africano e suas consequências é de extrema importância para a presente discussão e, acima de tudo, para a contemporaneidade. A colonização alterou o modo de organização político e social dos povos colonizados, impactando diretamente as condições para o estabelecimento dos Estados africanos no período pós-independência — que ocorreu majoritariamente durante a segunda metade do século XX — e que possui reflexos até os dias atuais (Cunha, 2023). Os processos estabelecidos e promovidos pelos países europeus ocorreram através do estabelecimento de controles territoriais além de suas fronteiras, tendo como consequência a instituição de políticas e ideologias de controle, além da exploração das regiões dominadas. Visto isso, o presente artigo discutirá os reflexos da colonização no continente africano e, mais especificamente, seus impactos no que tange à dinâmica da apatridia.

É crucial analisar as particularidades da colonização do continente africano, que passou por uma sucessão de processos, os quais, brevemente, incluem: em um primeiro momento, o estabelecimento de domínios territoriais com objetivos comerciais e, posteriormente, estratégicos e de controle; a remodelação do ideário dos colonizados, estabelecendo uma hierarquia baseada na suposta inferioridade dos povos colonizados em relação aos colonizadores; e, por último, a implantação de um modelo civilizatório europeu, legitimando todo o processo enquanto reorganizava regimes de controle simbólico, ideológico e político (Cunha, 2023; apud Mudimbe, 2013). Para a presente discussão, é importante discutir o último estágio da sucessão dos processos mencionados anteriormente: a imposição violenta de padrões civilizatórios europeus.

A Conferência de Berlim, realizada entre 1884 e 1885, liderada por Otto von Bismarck,, marca um momento decisivo na história da África, pois estabeleceu as regras que futuramente serviriam para a apropriação do continente. Entretanto, é importante esclarecer que este momento não definiu a divisão das colônias entre os membros europeus através do que é compreendido como Partilha da África, mas sim estabeleceu regulamentos e liberalização comercial sobre determinadas regiões costeiras, e também promoveu a lógica da civilização ocidental. A estratégia de desenvolvimento, que tinha como parâmetro as formas políticas e jurídicas dos Estados europeus, estabeleceu critérios segundo os quais os que não se encaixavam, como nos princípios da forma de organização política do Estado-Nação, eram marginalizados, e a violência do processo colonizador era, segundo os europeus, legitimada (Cunha, 2023 apud ATA, 1885; Herbst, 1989) [i]. Além disso, Uzoigwe (2010) pontua que é preciso desmistificar a ideia de que o processo tenha ocorrido de maneira pacífica pelos povos africanos, pois, em determinadas regiões do continente, visando manter sua soberania, reis, chefes e outros líderes políticos de grupos étnicos, por meio de diferentes estratégias, buscaram resistir à invasão externa.

Durante a Conferência, os europeus traçaram as primeiras fronteiras simbólicas do continente, frequentemente como linhas retas, ignorando, na maioria das regiões, as complexidades demográficas, etnográficas e topográficas dos povos locais. No entanto, a divisão e o controle efetivo da região ocorreram apenas a partir de tratados estabelecidos pelos europeus na década de 1890, com a implementação de uma série de regulamentações específicas para a região (Uzoigwe, 2010). Isso desencadeou uma imposição simbólica e prática de novos parâmetros de organização social e definição de pertencimento aos grupos presentes nesses territórios. E, além disso, os aparatos administrativos e  de infraestrutura que levaram ao controle da região, foram desenvolvidos somente entre 1900 e 1919 (Herbst, 1989).

Diante da diversidade cultural do continente, é impossível afirmar que essas fronteiras estabelecidas reflitam adequadamente as identidades, arcabouços simbólicos e culturais, e os territórios tradicionais das diversas comunidades africanas. O processo de criação de linhas divisórias no continente gerou não apenas mudanças geográficas, mas também segregação, fragmentando grupos étnicos e culturais e criando situações em que pessoas compartilhando a mesma cultura e história se encontram divididas por fronteiras artificiais. Esse legado colonial ainda reverbera na atualidade, afetando as relações políticas, sociais e econômicas na África.

A Problemática da Apatridia no Continente

A apatridia é um fenômeno latente no cenário internacional contemporâneo que afeta milhões de pessoas ao redor do mundo. Segundo a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, estes são compreendidos como “[…] [qualquer] pessoa que não seja considerada nacional por nenhum Estado sob a operação de sua legislação” (UNHCR, s.d(a), p.6, tradução nossa) [ii]. O não reconhecimento da nacionalidade de um indivíduo, ou, em certos casos, de uma coletividade, gera barreiras e limitações para o exercício dos seus direitos no local onde nasceram e vivem, incluindo o acesso à educação, cuidados de saúde, oportunidades de emprego e casamento ao longo da vida (UNHCR, 2015).

Diante da ausência de comprovações jurídicas sobre o paíse de origem destes indivíduos, pois estes muitas das vezes não possuem certidões de nascimento nem identidades, são negados até mesmo a dignidade de um funeral adequado e um certificado de óbito (UNCHR, 2015). Assim, “as milhões de pessoas ao redor do mundo que são privadas de uma nacionalidade muitas vezes lutam pelos mesmos direitos humanos básicos que a maioria de nós dá como garantidos” (UNCHR, s.d.(b), tradução nossa)[iii]. Encontrando-se à margem da sociedade, os apátridas enfrentam diversas violências simbólicas por não terem documentações que provam sua vinculação àquele território e, em certos casos, físicas, tornando-os invisíveis em seus próprios territórios.

A imposição de fronteiras durante o período colonial, que perduram até os dias atuais, gerou uma nova divisão política, jurídica e identitária dentro da África, o que impactou diretamente a dinâmica da apatridia e acentuou o processo de indivíduos não documentados. O vácuo de nacionalidade resultante da colonização acabou por criar um cenário em que muitas etnias nômades, não vinculadas a uma única região, não foram reconhecidas pelos Estados ali estabelecidos, e pessoas de uma mesma região não foram reconhecidas pelo Estado criado em sua área, devido à divisão irregular dos territórios. Segundo o relatório divulgado pelo Institute on Statelessness and Inclusion, de 2020, até o final de 2019, países como o Kuwait e a Costa do Marfim apresentaram números recordes de apátridas em seus territórios. É importante compreender que a condição da apatridia é estabelecida a partir do não reconhecimento da nacionalidade de um indivíduo, ou uma coletividade, por um Estado, sobre a sua dinâmica jurídica interna (UNHCR, 2015); no entanto, segundo o relatório, existe uma alta taxa de indivíduos não documentados no continente. A lógica da não documentação, em comparação à apatridia, compreende que um indivíduo possui a sua nacionalidade reconhecida por algum Estado, mas, sem documentação emitida pelo mesmo, eles se encontram limitados a exercer os seus direitos no território. No entanto, a apatridia pontua que o indivíduo não possui o vínculo da nacionalidade com nenhum Estado, o que os coloca em um ambiente de constante violência simbólica e jurídica, às margens da sociedade.

As Ações da União Africana para o fim da Apatridia no Continente

No dia 17 de fevereiro de 2024, durante a 37ª Sessão Ordinária da Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA), realizada na Etiópia, foi adotado formalmente o Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos relativo aos Aspectos Específicos do Direito à Nacionalidade e à Erradicação da Apatridia em África (ReliefWeb, 2024; AU, 2024). A reunião foi convocada visando consolidar mecanismos eficazes para a erradicação da apatridia e a documentação de indivíduos em todo o continente. A demanda formal para estabelecer mecanismos para proteger o direito à nacionalidade fora reconhecida em 2007, durante uma reunião em Kampala, em Uganda, que contou com a participação de membros de Organizações da Sociedade Civil (OSCs), acadêmicos, ativistas e líderes de Estado. Nesta reunião foi debatido a necessidade de novos mecanismos jurídicos para o continente que pudessem lidar com as dinâmicas de privação das identidades de determinados indivíduos e também com a redução de migrantes e refugiados indocumentados, o que poderia aumentar as chances de apatridia (Manby, 2024).

O documento relativo à reunião realizada em 2024 ainda não foi divulgado até a data do presente artigo,  mas desde já podemos compreender a importância de tais ações para a redução dos casos de apatridia no continente. Primeiramente, há uma ampliação normativa sobre a temática no continente, já que a UA não inclui em sua carta fundadora direitos específicos relacionados às pessoas sem nacionalidade, mas aborda questões relacionadas nos tópicos relativos à proteção de gênero e a problemática de não haver nacionalidade para as crianças. Além disso, entre os temas debatidos, busca-se diminuir os casos de gerações de refugiados não documentados, o que contribui para o não reconhecimento de sua nacionalidade e resulta em um alto volume de apátridas no continente. O protocolo representa o reconhecimento dos Estados africanos da necessidade de superar desafios relacionados à cidadania após a herança colonial. Embora haja um longo caminho até a resolução efetiva desse problema, a adoção do protocolo marca o início de um novo projeto para sua implementação, refletindo um reconhecimento geral de responsabilidade pan-africana, mesmo entre os marginalizados politicamente (Manby, 2024).

Considerações Finais

Em conclusão, é importante pontuar o desafio em delinear a questão da apatridia no continente africano. Primeiramente, devido à sua pluralidade étnica, linguística e política, é muito complexo estabelecer um critério comum para a dinâmica da ausência de nacionalidade e exclusão política, visto que estas podem ser causadas por diversas situações. Além disso, é interessante pontuar que a visão dos países do continente é mais voltada para a dinâmica dos povos, indo além da perspectiva individualista ocidental, compreendendo que as delimitações territoriais não limitam o exercício da cultura e da diversidade étnica.

O documento referente à reunião ainda não foi divulgado até a presente data, mas poderemos ver no futuro avanços e na ampliação das normativas referentes à proteção de pessoas apátridas e não documentadas. A atuação da União Africana neste contexto também é relevante, pois carrega uma abordagem multifacetada e sensível às especificidades regionais. A proteção aos indivíduos é praticada em muitos casos além da jurisdição nacional, visto o maior tratamento às questões dos povos – como o caso do Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos.

Referências

AU. 37th AU Summit. African Union. Disponível em: https://au.int/en/summit/37. Acessado em: 10 mar. 2024

Cunha, Brunno F. V. Divide et Impera: uma análise sobre a colonização da África e suas consequências. Fronteira: revista de iniciação científica em Relações Internacionais, v. 21, n. 42, p. 180-202, 14 abr. 2023.

Herbst, Jeffrey. The Creation and Maintenance of National Boundaries in Africa. International Organization, v. 43, n. 4, p. 673-692, 1989. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2706803.

Institute on Statelessness and Inclusion. Statelessness in numbers: 2020 An overview and analysis of global statistics. Aug. 2020. Disponível em: https://files.institutesi.org/ISI_statistics_analysis_2020.pdf. Acessado em: 10 mar. 2024

Manby, Bronwen. A new treaty on statelessness and the right to a nationality in Africa. EUI, Global Citizenship Observatory, 06 mar. 2024. Disponível em: https://globalcit.eu/a-new-treaty-on-statelessness-and-the-right-to-a-nationality-in-africa/. Acessado: 10 mar. 2024

UNHCR. About Statelessness. United Nations High Commissioner for Refugees, s.d(A). Disponível em: https://www.unhcr.org/ibelong/about-statelessness/. Acessado em: 09 mar. 2024.

UNHCR. Convention relating to the status of stateless persons. United Nations High Commissioner for Refugees, s.d(B). Disponível em: https://www.unhcr.org/ibelong/wp-content/uploads/1954-Convention-relating-to-the-Status-of-Stateless-Persons_ENG.pdf. Acessado em: 09 mar. 2024.

UNHCR. Nacionalidade e Apatridia na África Ocidental: Nota de Fundo. United Nations High Commissioner for Refugees, out. 2015. Disponível em: https://www.unhcr.org/uk/sites/uk/files/legacy-pdf/591c212a7.pdf. Acessado: 09 mar. 2024.

Uzoigwe, Godfrey N. Partilha europeia e conquista da África: apanhado geral. In: BOAHEN, Albert Adu (ed.). História geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. cap. 2, p. 23-50. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000190255

ReliefWeb. UNHCR lauds African Union move to address statelessness across the continent. ReliefWeb, fev. 2024.  Disponível em: https://reliefweb.int/report/world/unhcr-lauds-african-union-move-address-statelessness-across-continent

Notas

[i] –  Para mais informações sobre o processo colonizatório no continente africano e as suas consequências, acesse: Cunha, Brunno F. V. Divide et Impera: uma análise sobre a colonização da África e suas consequências. Fronteira: revista de iniciação científica em Relações Internacionais, v. 21, n. 42, p. 180-202, 14 abr. 2023.

[ii] –  “[…] the term “stateless person” means a person who is not considered as a national by any State under the operation of its law […] (UNHCR, s.d, p.6).

[iii] –  “… The millions of people around the world who are denied a nationality often fight for the same basic human rights that most of us take for granted” (UNHCR, 2015).

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