A intensificação da instabilidade na RDC: o avanço do M23 e a retirada da MONUSCO como manifestações do fracasso na estabilização da crise política do país

Maria Silveira Bueno Ferreira de Sousa
Renan José de Almeida

Resumo

Nas últimas semanas, apesar da presença da MONUSCO há quase 25 anos na região, a República Democrática do Congo vivenciou um aumento de tensões em seu território devido ao avanço do grupo radical conhecido como Movimento 23 de Março (M23) em direção à cidade de Sake, ao leste do país. À vista disso, o presente artigo visa analisar a complexidade desse cenário, concomitante à insatisfação da população diante da dificuldade da MONUSCO em conter a crise humanitária e em auxiliar o governo congolês a promover a estabilização política e de segurança.

O avanço do M23 em direção à Goma e a dificuldade da MONUSCO em conter a crise humanitária

Em fevereiro de 2024, os radicais do Movimento 23 de Março realizaram um avanço estratégico e cercaram Sake, cidade próxima a capital da província do Kivu do Norte, e progrediram em direção ao controle da região. O avanço do grupo elevou a preocupação em relação a segurança e a estabilidade do leste do país, uma vez que os radicais possuem um objetivo claro: tomar o controle da capital da região, Goma, que possui uma extrema importância geopolítica, devido a sua localização territorial e a sua força econômica

Não é a primeira vez que o avanço em direção a capital da província acontece, em 2012, a investida do M23 ganhou destaque internacional com a tomada da cidade em questão. Para além da ocupação estratégica, essa tomada envolveu diversos tipos de violação de direitos humanos. Na época, a Alto-Comissária das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, Navi Pillay, reiterou que as atividades do M23 figuravam entre as piores ações que violaram o bem-estar da população do país. Logo, o avanço recente acende um alerta de que o caos, que já foi vivenciado uma vez, seja instaurado novamente. 

Diante do aumento das hostilidades entre as forças nacionais congolesas e o grupo armado M23, desde 2022, a população passou a realizar protestos contra a presença da missão da ONU no território, a MONUSCO – missão que, há quase 25 anos, tem tentado conter os avanços da crise humanitária na região. Em decorrência disso, o Conselho de Segurança tem prosseguido, desde 2020, com um plano de retirada gradual das tropas de manutenção de paz da MONUSCO. A retirada será realizada a partir do estabelecimento de critérios para a transferência de responsabilidades das tropas da missão para as forças do governo congolês, para que seu mandato seja concluído em dezembro de 2024. 

O ressurgimento do M23: um reflexo das raízes históricas da instabilidade na RDC

Os ataques rebeldes atualmente vivenciados na República Democrática do Congo são reflexos de um grande histórico de conflitos que assola o país há mais de trinta anos. Dentre os eventos que possuem implicações na atual crise, sublinha-se o Genocídio de Ruanda (1994) [i], evento que suscitou o intenso fluxo migratório das etnias hutus e tutsis para o leste da RDC, bem como, obteve participação na Primeira (1996-1997) [ii] e na Segunda Guerra do Congo (1998-2003) [iii]. Esses embates marcaram o fortalecimento de grupos radicais no território congolês, visto que foi nesse contexto que coalizões rebeldes passaram a se organizar com ampla estratégia para impor o seu controle sob a região, perpetuando conflitos com alta complexidade étnica e cultural.

Após um longo período de confrontos, uma mediação foi concluída somente em março de 2003, com o apoio da Organização das Nações Unidas, quando foi assinado um tratado, o Global and All Inclusive Agreement, que firmou um governo no qual o atual presidente, Joseph Kabila, deveria governar com mais quatro pessoas, dentre elas, representantes de grupos milicianos que participaram dos conflitos armados. Segundo Valenzola (2013), essa decisão contribuiu para intensificar o fortalecimento do poder miliciano no território congolês e os anos seguintes ainda foram marcados por fortes tensões, uma vez que os grupos radicais propagaram suas influências e atingiram um nível de afirmação que, em muitos casos, se aproximava ao poderio estatal, principalmente na região leste do país.

Outro aspecto que reflete a conjuntura atual foi o surgimento do CNDP [iiii] em 2006, uma milícia que recebeu uma atenção singular do governo congolês. Na tentativa de conservar um acordo com o movimento, no dia 23 de março de 2009, foi proposto um pacto que sustentava a integração militar do grupo e facilitava a entrada de membros dentro da estrutura estatal, além de permitir a formação de uma frente política. Desse modo, conforme Valenzola (2013) salientou, o acordo era muito ambicioso e muitas demandas não foram cumpridas, situação que propiciou a existência de insatisfações dentro do próprio grupo miliciano. Após três anos de vigor, o acordo não resistiu aos desafios, nesse sentido, em protesto à quebra do acordo, o Movimento 23 de Março surgiu no ano de 2012, defendendo o não cumprimento dos termos propostos. Parafraseando Stearns (2012), a emergência do grupo reflete uma continuação das disputas étnicas e políticas da RDC e, de maneira similar aos outros conflitos apresentados, a ascensão do movimento radical voltou a colocar os grupos milicianos e o Estado em embate. 

Neste cenário, o foco regional e internacional se voltou para a complexidade deste conflito, em razão de sua súbita escalada e da sua capacidade em disseminar violência pela região do Congo. O movimento atingiu seu ápice quando tomou a cidade de Goma em 2012, demonstrando a fraqueza do exército e a debilidade das forças de manutenção da paz, que prometiam impedir a ocupação da área. Os esforços para conter a crise não pararam e, com uma ação militar de sucesso, a rebelião foi declarada como acabada. Contudo, segundo Vogel (2013) a conjuntura instável necessitava de um alto compromisso das forças estatais para evitar que os erros do passado ocorressem novamente, porém, causas fundamentais, incluindo conflitos étnicos, problemas institucionais e questões de segurança, que contribuíram para a instabilidade do Estado, permaneceram sem resoluções.

Isto posto, O Movimento 23 de Março não foi completamente desmantelado e retomou suas atividades oficialmente em 2022, quando o grupo avançou contra as forças militares congolesas de Rutshuru, uma cidade localizada na província de Kivu do Norte. Como estopim para o novo ataque, as lideranças afirmaram que a reorganização do grupo foi, mais uma vez, uma tentativa de fazer com que o governo cumprisse com as condições propostas no acordo, que foi pactuado após a rendição em 2013. Desde o seu ressurgimento, o grupo radical progrediu de forma expressiva e, no contexto atual, em 2024, o movimento expande-se novamente em direção ao controle sobre Goma, prolongando o conflito armado.

Segundo um documento interno da ONU acessado pelo The Guardian, os rebeldes do movimento avançaram em posições estratégicas para territórios próximos de Saké, cidade localizada a 25 quilômetros da capital da região, e propagaram um pesado conflito, que deixou quatro mortos e diversos feridos. Além disso, o  progresso impediu o deslocamento de milhares de pessoas desalojadas pela crescente onda de violência, só nos arredores da capital da província, Goma, há cerca de meio milhão de pessoas desabrigadas. Vale mencionar que, como consequência do recente avanço, apenas no período entre 2 e 7 de fevereiro, 135.0000 pessoas se mudaram para a capital da província em busca de refúgio, segundo dados da OCHA. 

Tendo em consideração os desdobramentos mencionados e parafraseando Carvalho e Duarte (2024), faz sentido refletir que o fortalecimento do M23 é um impasse para além da segurança militar, o progresso do grupo é resultado de uma profunda combinação entre a fragilidade do aparato estatal e a falta de estratégias e soluções políticas eficazes. A complexa história do país corrobora essas afirmações, uma vez que grupos e embates similares assombram o território há anos e, durante esse extenso período, poucas ações políticas eficazes, com o objetivo de uma solução a longo prazo, foram propostas. Nesse sentido, o atual progresso em direção a Goma pode ser interpretado como uma reiteração do passado. 

O fracasso da MONUSCO em auxiliar a estabilização política e de segurança

Apesar de seu propósito primordial, a presença da MONUSCO é constantemente criticada pelo fracasso da missão de garantir a estabilização política e a segurança a longo prazo. Visto que, mesmo após duas décadas de serviço prestado, ainda estima-se que um em cada cinco cidadãos congoleses necessita de “proteção e assistência humanitária”. Conforme o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU (OCHA), até 31 de dezembro de 2023, mais de 9,6 milhões de pessoas ainda estavam em movimento na RDC, com aproximadamente 5,6 milhões de pessoas deslocadas internamente, 2,6 milhões de repatriados e 529 mil refugiados de países vizinhos. Totalizando 25,4 milhões de pessoas que carecem de assistência humanitária em 2024, sobretudo, nas províncias orientais, gravemente atingidas pela violência e pela insegurança.

retirada ocorrerá em três fases. Na primeira fase, cerca de 2.000 soldados da ONU deixarão Kivu do Sul até o final de abril, reduzindo a força atual de 13.500 homens da MONUSCO para 11.500, disse Keita. Em seguida, catorze bases da ONU na província serão ocupadas pelas forças de segurança congolesas. Por fim, as forças de Kivu do Norte e Ituri também se retirarão. Apesar disso, Christophe Lutundula, o Ministro dos Negócios Estrangeiros congolês, enfatizou que a retirada da MONUSCO não significa o fim da luta empreendida para proteger os interesses territoriais do país.

De todo modo, no início de janeiro deste ano, a representante especial da ONU, Bintou Keita, disse em uma conferência de imprensa que “o desligamento da MONUSCO não é um desligamento das Nações Unidas. A ONU estará presente, durante e depois da existência da missão de manutenção da paz”, sinalizando a manutenção do vínculo com a organização. Concluiu esclarecendo que, até o final deste ano “a missão permanece protegendo civis, apoiando a reforma do setor de segurança e ajudando nos processos de desarmamento, desmobilização e reintegração”. 

Simultaneamente a isso, deve-se levar em consideração que após uma presença de quase 25 anos na República Democrática do Congo, a saída das tropas da ONU pode significar uma nova retomada do poder do governo congolês no que diz respeito ao enfrentamento do conflito. Em todo caso, percebe-se que além das dificuldades que as tropas da ONU enfrentam na tentativa de manutenção de paz, com referência aos grupos insurgentes,  como o M23, e a insatisfação da população, há também as dificuldades devido a questões estruturais que permitiram que o conflito persistisse – como forças de segurança abusivas e corruptas, e questões de organização internas da ONU. 

Além disso, considera-se também a falha da missão em articular estratégias que estimulassem a estabilização política a longo prazo, de modo a auxiliar o governo a partir de esforços que promovessem a negociação da paz e a resolução do conflito, ao contrário de apenas buscar conter o combate militar. Nesse sentido, apesar da assistência militar ao governo, a ausência de implementação de soluções políticas amplas e eficientes perpetua um ambiente propício para a reorganização de milícias, como o caso do M23.

Notas de fim

[i] O Genocídio de Ruanda (1994) foi um conflito marcado pelo embate entre duas etnias, os hutus e os tutsis, que desencadeou a morte de aproximadamente 800 mil pessoas. Esse genocídio provocou uma intensa divisão étnica, que causa consequências até hoje em Ruanda e na região africana. 

[ii] A Primeira Guerra do Congo (1996 – 1997), foi um embate que ocorreu em meio à instabilidade política e étnica pós-genocídio de Ruanda, marcado pelo envolvimento de diferentes coalizões rebeldes. O conflito teve origens complexas, como disputas territoriais, interesses econômicos e rivalidades de etnias.

[iii] A Segunda Guerra do Congo (1998 – 2002) foi causada por grupos rebeldes que, motivados por interesses políticos e econômicos, visavam tomar o controle do território congolês. A profundidade do conflito deixou um legado de violência e divisão que continua a afetar a região até os dias de hoje.

[iv] O Congresso Nacional para a Defesa do Povo (CNDP) foi inicialmente um grupo rebelde liderado por Laurent Nkunda, na República Democrática do Congo. O movimento buscava, sobretudo, a autonomia e o controle do leste do país. 

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