A influência chinesa no conflito de Myanmar e a perpetração da crise humanitária

Bruno Lima dos Santos
Camila Juliana de Almeida Bueno

Resumo

No início de 2024 a China mediou um acordo de cessar-fogo entre a junta militar que governa Myanmar e os grupos étnicos armados, que lutaram contra a ruptura democrática do país há três anos. No dia 7 de março uma nova ofensiva foi deflagrada sobre a junta militar no estado de Kachin, próximo à fronteira com a China. O presente artigo busca explorar a relação da China com a ditadura de Myanmar e a resistência dos grupos armados frente às ofensivas da junta militar de restabelecer o controle total sobre o país.

Conflito e mediação em Myanmar

Em janeiro de 2024 a China mediou um acordo de cessar-fogo temporário entre a junta militar que governa Myanmar e os grupos étnicos armados da Aliança das Três Irmandades[i] que lutam contra o governo no norte do país no estado de Shan. A China, que tem Myanmar como um parceiro estratégico no sudeste asiático, vem tendo atritos com a junta militar por sua incapacidade de combater os centros de fraudes cibernéticas sediados no país. Segundo um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, gangues estão realizando tráfico humano para Myanmar para trabalhos forçados em operações de fraudes cibernéticas que visam, em sua maioria, cidadãos chineses. De acordo com o relatório, já são mais de 120 mil pessoas em Myanmar coagidas a realizarem as operações de fraude.

Apesar de uma nova rodada de conversações do cessar-fogo mediadas pela China, de 29 de Fevereiro a 1 de Março, que resultou num acordo de partilha de receitas do comércio fronteiriço com o Exército da Aliança Democrática Nacional de Myanmar (MNDAA), que controla a passagem de pessoas e bens na fronteira com a China, a Aliança das Três Irmandade sinalizou mais recentemente que o cessar-fogo pode estar sob ameaça. Nesse sentido, o cessar-fogo no estado de Shan permitiu à junta reagrupar suas forças e começar a ampliar a conscrição para recompor suas frentes no norte do país. Nesse contexto, o Exército de Independência de Kachin (KIA) considera essencial iniciar novos conflitos para evitar que a junta militar consiga recompor suas forças para uma contraofensiva sobre os territórios que estão sob controle do KIA no estado de Kachin.

Assim, no dia 7 de março, o KIA lançou uma nova ofensiva sobre a junta militar de Myanmar que resultou na captura de três bases militares da junta e onze postos avançados próximos à fronteira com a China. Desde do cessar-fogo no estado de Shan, o KIA no estado de Kachin, tem sido o principal adversário da junta militar, aproximando-se de Myitkyina, a capital de Kachin. No início de março a junta militar realizou novos ataques na cidade de Lai Zar, próximo à fronteira com a China, a cidade tem sido sede do KIA desde o início do conflito. Durante o ataque, projéteis atingiram prédios e veículos em território chines, o que foi interpretado pelo KIA como uma tentativa da junta militar de pressionar a China a interferir no conflito para mediar um cessar-fogo.

A instabilidade política em Myanmar da transição democrática ao conflito atual

Myanmar, também conhecida pelo nome colonial de Birmânia, enfrenta a instabilidade política desde sua independência em 1948 do Reino Unido. Desde sua fundação o país oscilou entre períodos democráticos e ditatoriais controlados pelo exército nacional, os chamados Tatmadaw, que sempre estiveram ligados ao poder no país, mesmo em períodos democráticos. Em 2003, durante o governo militar do general Khin Nyunt, foi anunciado um roteiro em sete etapas para a restauração democrática do país, fruto da insatisfação nacional com o governo e da pressão internacional dos EUA e da ONU por denúncias de violações de direitos humanos cometidos pela junta militar contra a população.

A transição democrática incluía a reestruturação da Convenção Nacional, responsável pela elaboração de uma nova constituição, a realização de um referendo para a aprovação da constituição e de eleições gerais para o Hluttaw – órgão legislativo do país. A nova constituição foi finalizada em 2008 e as eleições foram realizadas em 2015, com a vitória da Liga Nacional para a Democracia (NLD). O partido era liderado por Aung San Suu Kyi que foi líder do movimento pró democrático no país, recebendo o Prêmio Nobel da Paz em 1991 por sua defesa da democracia e do não uso da força. Os Tatmadaw se mantiveram presentes no governo com o poder para indicar membros para o Hluttaw. O então presidente eleito Win Myint defendeu que para efetivar a transição democrática eram necessárias reformas para reduzir a presença dos militares no governo. 

Em 2020 foram realizadas eleições gerais em que o NLD foi o partido vencedor, elegendo 83 representantes dos 113 para maioria na câmara baixa do Hluttaw. Em fevereiro de 2021 os Tatmadaw acusaram as eleições de fraudulentas e depuseram o presidente Myint e os membros do Hluttaw um dia antes da posse dos novos eleitos, além de declarar emergência nacional e restringir acesso às comunicações. Suu Kyi, que era conselheira de estado no governo Myint, foi presa após o golpe acusada de traição. Sua prisão atraiu ainda mais a atenção internacional, o que acelerou a retomada das sanções econômicas dos EUA e seus aliados ocidentais sobre Myanmar após uma década do fim das sanções.

Desde o golpe militar em Myanmar, em 2021, as sanções econômicas e os afastamentos diplomáticos dos países ocidentais acentuaram o isolamento do governo mianmarense na política internacional. No entanto, a junta militar não esteve totalmente sem apoio, haja vista que a China seguiu uma posição contrária a da maioria dos Estados, reconhecendo rapidamente os Tatmadaw e estabelecendo uma relação de cooperação econômica e de aproximação política com o novo regime. As movimentações da China no cenário internacional não deixaram dúvidas sobre o envolvimento entre os governos, já que os chineses condenaram as sanções ocidentais e vetaram a repreensão do golpe de Estado em Myanmar no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), também vetado pela Rússia, em 2021. Além disso, manteve uma postura de pressão para que outras nações da região tivessem uma relação similar, principalmente comercial, com Naypyidaw. Consequentemente, os Tatmadaw, tornaram-se cada vez mais ligados aos interesses chineses para sua permanência no poder.

Após o golpe a população mianmarense saiu às ruas em  um movimento pró-democracia, a junta militar respondeu de forma violenta com uma campanha de terror, em que mais de 15 mil pessoas foram presas. Após a repressão violenta, grupos armados começaram campanhas de guerrilha contra a junta militar, esses grupos formaram o Governo de Unidade Nacional (NUG) para se contrapor aos militares. Desde o golpe, grupos de resistência têm realizado ataques contra a junta militar nos estados de Shan e Kachin, apesar das ofensivas dos militares os grupos de resistência continuam controlando partes significativas do território. Em outubro de 2023 foi deflagrada a Operação 1027 pela Aliança das Três Irmandades no estado de Shan, que visava a indústria de fraudes cibernéticas. A China além de manter relações com a junta militar, tem canais de diálogo com os grupos guerrilheiros, pela proximidade do estado de Shan com a fronteira chinesa, dessa forma a China teria dado consentimento à Operação 1027 como uma reprimenda ao fracasso da junta militar em controlar as fraudes cibernéticas contra cidadãos chineses.

Os peões da China: a atuação do Tatmadaw e da Aliança das Três Irmandades na intensificação da crise humanitária em Myanmar

A relação do governo atual de Myanmar com a China tem se desgastado recentemente devido às falhas da junta militar na segurança das fronteiras, o fracasso em conter as organizações criminosas que operam o esquema de fraudes cibernéticas redirecionou os chineses em relação aos grupos étnicos armados de Myanmar. Anteriormente a esses eventos, havia uma hesitação chinesa no envolvimento com os rebeldes, após o apoio do governo chinês na Operação 1027, que foi mais eficaz no combate aos crimes das zonas fronteiriças, a Aliança das Três Irmandades e a China começaram a ter mais diálogo, colocando assim o exército nacional numa suposta posição de vulnerabilidade. Outro ponto que ilustra esse novo comportamento tem sido a mediação da China nas tréguas temporárias entre a junta militar e os grupos armados em algumas regiões. Contudo, a intermediação do conflito sugere que a China tem a intenção de fazer com que as duas partes trabalhem juntas, primordialmente, para assegurar a segurança e os interesses dos chineses.

Logo, a aproximação com a Aliança das Três Irmandades não significa que a China tenha mudado o seu direcionamento político sobre a guerra civil de Myanmar, e nem mesmo que esteja fazendo um jogo duplo. Pelo contrário, essas movimentações indicam que o país está seguindo fielmente os próprios interesses nacionais. Além da manutenção da segurança e da estabilidade das fronteiras e dos comércios chineses da região, Myanmar também é crítico para a segurança energética das províncias do Sudoeste da China, devido aos gasodutos e o acesso ao Estreito de Malaca[ii] no país. No mais, outro objetivo nacional sensível para os chineses é a questão de sua credibilidade no Sudeste Asiático, já que os Estados dessa região desconfiam e receiam os avanços chinês. Dentre as principais preocupações, percebe-se que não há o interesse diretamente em manter ou estabelecer a paz em Myanmar, mas sim de apenas assegurar o mínimo de controle no conflito para alcançar os seus propósitos.

Embora os novos diálogos com os grupos étnicos armados tenham suscitado uma mudança na atuação de Pequim no conflito, a maior parte dos analistas independentes declaram que a perspectiva do posicionamento da China, para o futuro, continua a ser favorável ao Tatmadaw. Para as ambições do gigante asíatico, é conveniente que Myanmar seja governado por um exército fraco e extremamente dependente dos chineses, com isso, as incompetências da junta militar tornam-se apenas alvos de indulgência e não motivações para a troca de aliados. No mais, a presença e os avanços dos interesses chineses na área do Oceano Índico têm desencadeado suspeitas e receios dos países da região, principalmente da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) que repudiaram veemente a violência no Myanmar, e temem que a assertividade chinesa agrave a crise humanitária em curso.

Em fevereiro deste ano, Volker Türk, alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, declarou que a situação dos direitos humanos em Myanmar “transformou-se num pesadelo sem fim”. Enquanto a China move os peões em seu tabuleiro de xadrez, a população mianmarense sofre com o abuso total de poder da junta militar, que além de extinguir todos os direitos básicos e fundamentais dos cidadãos, como é visto nas prisões arbitrárias e na  intensificação das penas de morte em sentenças de atores da oposição, também perpetram atos brutais, bem como o uso sistemático da tortura. No mais, os civis são alvos de bombardeios aéreos frequentemente, escolas, hospitais e igrejas tornam-se muitas vezes os centros dos ataques e os feridos são restringidos de cuidados médicos, assim como qualquer ajuda humanitária é bloqueada no país. Vale ressaltar, que essas ações militares só são possíveis através da distribuição dos recursos de empresas estrangeiras ao governo de Myanmar. A violência indiscriminada, perpassa também pelo o uso, do Tatmadaw,de armamentos proibidos pelo direito internacional, sendo esses as bombas de fragmentação e as minas terrestres antipessoal.

Por fim, a extrema pobreza e a violência provocaram o deslocamento em massa da população mianmarense, mais de um milhão, até o momento, tornaram-se deslocados internos e outra parte desse número se concentra em campos de refugiados que aguardam os pedidos de asilo. Ademais, um milhão de mulçulmanos Rohingya, que residiam no território também se deslocaram para outros Estados, apesar da perseguição desse grupo étnico já ocorrer antes mesmo do golpe militar, o contexto atual é ainda mais agravante para os 130 mil Rohingya que permaneceram em Myanmar. Esses não possuem os direitos de cidadania e de livre circulação, a maior parte deles estão presos em suas aldeias sem mantimentos suficientes, sofrendo diversos tipos de repressões e agressões, sem perspectiva de ajuda humanitária para o futuro.

Notas de fim

[i]: Composta pelo Exército da Aliança Democrática Nacional de Myanmar (Myanmar National Democratic Alliance Army – MNDAA), pelo Exército de Libertação Nacional Ta’Ang (Ta’ang National Liberation Army – TNLA) e pelo Exército Arakan (Arakan Army – AA), a aliança faz parte de uma coalizão de sete organizações étnicas armadas que mantêm laços estreitos com a China e têm bases ou territórios próximos à fronteira do país.

[ii]: Rota de comércio que liga a China e outros países asiáticos à África, à Europa e ao Médio Oriente através do Oceano Índico.

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