Do caos à renúncia: a influência política de gangues armadas no afastamento do primeiro-ministro Ariel Henry no Haiti

Amanda Ribeiro Silva
André Luís Norvino da Cruz

Resumo

Após ataques em prisões na capital do Haiti, Porto Príncipe, e ameaças de gangues armadas do início de uma guerra civil, o primeiro-ministro, Ariel Henry, renunciou ao seu cargo em março, sinalizando um aprofundamento da crise que assola o país. A atuação destas gangues no Estado possui uma longa história que remonta à instabilidade política do país que é presente desde sua independência, trazendo notoriedade para as ações destes grupos perante a sociedade. O presente artigo busca analisar a atividade das gangues em meio ao cenário político haitiano e seus reflexos na renúncia de Henry, tendo em vista a intensificação do cenário de crise do país.

Renúncia de Ariel Henry em meio ao levante de gangues armadas

O primeiro-ministro e presidente interino da República do Haiti, Ariel Henry, anunciou a sua renúncia ao cargo no dia 11 de março em meio a novos episódios de violência que vêm perturbando a nação haitiana. A crise institucional remonta governos anteriores, porém, desde o assassinato do ex-presidente Jovenel Moise, em 2021, há uma crescente instabilidade política, em meio a violência de mais de 200 gangues armadas presentes no país. Dentre os alvos, a capital Porto Príncipe está entre as regiões mais dominadas do território, com cerca de 80% dominado por esses grupos armados, tornando a cidade o palco do conflito. A decisão de renunciar ocorreu após outros atores, como os Estados Unidos e a Comunidade do Caribe[ii], apoiarem a ação e incentivarem a possibilidade de um conselho presidencial de transição, que deve ocorrer com a participação de grupos políticos, sociedade civil, grupos religiosos e setor privado, além da comunidade internacional. 

Marcado por um novo levante de grupos armados, o governo de Henry chega no início de março de 2024 de forma instável, pedindo ajuda internacional para solucionar o conflito que assola o país. O presidente interino realizou recentemente uma viagem ao Quênia a fim de estruturar uma nova missão de paz que seria liderada pelo país africano, porém isso é falho já que o país suspendeu o envio de policiais para o Haiti. Entretanto, o fracasso das missões que se antecederam, como a MINUSTAH[i], abriram precedentes para críticas da população, além de gangues armadas argumentarem a possibilidade de uma guerra civil, que pressionaram para que Henry renunciasse ao governo. Desse modo, a tentativa de Henry fracassou e o sistema de governo do país caribenho entrou em colapso, a partir dos recentes ataques de gangues armadas no país. 

O apoio externo vindo de países como Brasil, Estados Unidos e França tem sido alvo de críticas da oposição ao governo de Ariel Henry, considerado como ilegítimo. Entre figuras notórias, está Jimmy “Barbecue” Cherizier, líder da gangue G9, que já vem realizando constantes ataques no país, argumentando ser contra o governo Henry. Desde a nomeação como primeiro-ministro, em 2021, o político haitiano vem sofrendo críticas à sua longevidade no poder, por ser inicialmente um governo provisório e que organizaria novas eleições. Todavia, permaneceu no cargo até as recentes ameaças contra sua integridade, realizadas por essas gangues, que não querem o diálogo, e sim a retirada de Henry.  

As gangues no cenário político haitiano

Haiti se libertou da escravatura e colonialismo francês no início do século XIX, se tornando a primeira república a ser liderada por negros no mundo e o primeiro Estado independente do Caribe. Porém a independência teve um alto custo, devido a extorsão francesa de que os antigos proprietários de escravos fossem indenizados, fazendo com que o país pagasse “indenizações” no valor de 150 milhões de francos à França. Em valores atuais a reparação seria proporcional a 560 milhões de dólares, porém se o dinheiro tivesse permanecido no Haiti seria proporcional a mais de 20 bilhões de dólares presentes  na economia haitiana desde do século XIX.

Diante disso, o país sofre com instabilidade crônica, devido a crises políticas e econômicas, e catástrofes naturais, principalmente o terremoto ocorrido em 2010 que deixou cerca de 300 mil pessoas mortas, contribuíram para danos estruturais e econômicos que hoje colocam o país como o mais pobre das Américas. Ademais, a vulnerabilidade política se intensificou ainda mais em 2021 com o terromoto ocorrido que resultou em inúmeras mortes e abalos estruturais e, sobretudo, com o assassinato de Jovenel Moïse, presidente eleito em 2016. Isso fez com que um governo interino fosse instalado e o primeiro-ministro, Ariel Henry, assumisse o poder, o que não conseguiu conter a instabilidade no país e devido às pressões internas de gangues, renunciou ao cargo em março deste ano. 

A formação das gangues haitianas está intimamente associadas com políticos, partidos políticos, empresários e as elites do país. Como já mencionado na seção anterior, se acredita que há cerca de 200 gangues armadas no Haiti e por volta de metade delas estão presentes na capital, Porto Príncipe. Há duas grandes gangues que são rivais há anos e se enfrentam pelo controle de bairros na capital, G9, liderada por Jimmy “Barbecue” Cherizier, e GPep, liderada por Gabriel Jean-Pierre, também conhecido como Ti Gabriel. Ambos já foram acusados de violência sexual e assassinato em massa de locais que estão sob sua autoridades, além de distritos que planejam assumir. Mas o descontentamento com o governo de Ariel Henry fez com que, em 2023, os dois grupos chegassem a um pacto para cooperação e destituição do primeiro-ministro, chamado “viv ansanm”, que seria “viver juntos” em crioulo haitiano.

Figura 1: Principais territórios de gangues em Porto Príncipe e arredores

Fonte: BBC News Brasil, 2022.

É possível traçar esse fenômeno das gangues armadas desde a ditadura dos governos de François Duvalier, conhecido como Papa Doc, que foi presidente de 1957 a 1971, e seu filho Jean-Claude Duvalier, Baby Doc, que presidiu o país de 1971 a 1986, resultando ao todo 29 anos de governo. Esses governos marcam um momento de corrupção em que grande parte das reservas financeiras do Haiti foi para suas contas bancárias particulares e investimentos imobiliários luxuosos. Além disso, esses recursos foram usados para estabelecer um grupo paramilitar, o Tontons Macoutes, para fins de reprimir a oposição ao governo dos Duvaliers, resultando na morte e tortura de milhares de pessoas, esse grupo criou um precedente para as gangues atuais. 

Nos dias de hoje essas gangues são diferentes, conseguindo um nível de sofisticação nos seus ataques, como os ataques em prisões em Porto Príncipe no início de março desse ano, em que conseguiram desafiar as forças policiais haitianas. Isso ocorre devido a um grande acúmulo independente de dinheiro, de forma criminosa, como extorsão, tráfico e sequestros, e realizando atividades ilegais para fins políticos. Assim, com esse crescimento e autonomia, e também, de maneira especial, após o assassinato do presidente Moïse que deixou um vácuo de poder no governo, as gangues principais, como G9 e GPep, estão a cada vez mais realizando exigências políticas, com o intuito de não apenas manterem sua relevâcia, mas sua existência.

O papel das gangues em meio à crise política e ao vácuo de poder

Como já abordado, a crise no Haiti possui origens profundas que datam anos de corrupção e um sistema político instável, em que o sofrimento da nação é marcado desde o momento em que o país era vítima da escravatura, extorsão e colonialismo francês, que foi se aprofundando com o passar de gerações após se tornar independente. No final da década de 1950, o Haiti ficou no controle dos Duvalier até 1986, que expropriaram recursos financeiros do país e contribuíram para a força militar que aterrorizou a população e que a brutalidade remonta os ataques das atuais gangues armadas. Mesmo quando houve a primeira eleição democrática do país em 1990, em que Jean-Bertrand Aristide foi eleito, ocorreu um golpe que o tirou do poder em 1991. Depois ele retornou ao poder mais duas vezes, em 1994 e em 2001, mas foi deposto por mais um golpe, em um contexto onde a pobreza do país era imensa.

O cenário de pobreza opressiva do Haiti seguiu sem nenhuma mitigação mesmo com novos governantes entrando e saindo do poder nos anos que seguiram, e que foi agravado ainda mais com o terremoto que atingiu o país em 2010. Com o assassinato de Jovenel Moïse a crise se agravou, além de criar um vácuo de poder. Nesse momento, Ariel Henry, então primeiro-ministro entra ao poder como presidente interino e enfrenta uma crise de legitimidade com certos grupos da sociedade civil que queriam que o poder fosse entregue a um governo de transição, mas a exigência foi rejeitada. Isso fez com que a violência das gangues haitianas aumentasse em busca de seus interesses políticos, refletindo na população de forma a intensificar o caos, o que contribui para que o Estado seja considerado o mais frágil do continente americano.

As gangues armadas do Haiti têm desempenhado um papel central na instabilidade política e social do país, exercendo controle significativo em vastas áreas, controlando-as por meio da violência e intimidação. Recentemente, a pressão sobre o primeiro-ministro Ariel Henry para que renunciasse ao cargo evidencia a influência desses grupos, que não apenas envolvem atividades criminosas, mas também buscam lugar na governança haitiana. A aliança entre as principais gangues, G9 e GPep, demonstra uma determinação conjunta em participar politicamente no país, resistindo a intervenções estrangeiras, percebidas como ameaça à sua autonomia e interesses. 

Diante de um novo vácuo de poder deixado a partir da renúncia de Henry, o país está tomado por gangues. O líder proeminente do G9, Jimmy Chérizier, fez declarações sobre a possibilidade de abandonar as armas em troca da participação nas negociações para estabelecer um novo governo. Desde a saída de Henry, foi estabelecido um Conselho Presidencial de Transição, no qual Chérizier defende a participação de seu grupo nas discussões. Controlando grande parte da capital, o líder da G9 enfatizou em seus últimos discursos a necessidade de soluções diante da escalada da violência no Haiti, ele sugere que o abandono das armas poderia ser uma possibilidade para conter as agitações que estão conturbando a população do país.

A evolução das gangues haitianas para uma força mais autônoma reflete mudanças significativas na dinâmica política e social do país, podendo influenciar e até mesmo determinar eventos políticos importantes, como foi a renúncia de Henry. Assim, as gangues têm se afirmado como atores poderosos que buscam não apenas o lucro objetivo por sequestros e outras atividades ilícitas, mas também uma participação ativa no processo político do Haiti. Mesmo com os esforços internacionais por meio da MINUSTAH, que buscavam a estabilidade no país, a saída da missão foi marcada por crimes, apontando os agravamentos contemporâneos, que demonstram um ambiente desafiador para lidar com a violência e caos, causado pela crescente autonomia das gangues e suas influências políticas e econômicas.

O fracasso da MINUSTAH em alcançar seus objetivos perpassa tanto a ineficácia política, quanto às consequências humanas devastadoras. Além dos conflitos violentos e da instabilidade prolongada, a presença da missão foi marcada por relatos de abusos e crimes cometidos por seus membros, incluindo casos de exploração sexual e abuso de poder, além da epidemia de cólera. Esses incidentes não só minaram a confiança na missão e nas Nações Unidas, mas também exacerbaram a tensão e o descontentamento entre a população haitiana, ampliando os desafios enfrentados no processo de construção de paz, em meio ao cenário atual. 

Notas de fim

[i] MINUSTAH é a sigla que se refere à Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, que teve liderança brasileira. Para compreender melhor as implicações da missão é recomendada a leitura do artigo “O Encerramento da MINUSTAH e o Balanço das Operações”.

[ii] Comunidade do Caribe, uma organização regional que promove a cooperação econômica e política entre os países do Caribe.

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