Um continente em transição: os golpes no Sahel e as tensões no Chifre da África.

Filipe Natanael Reis Machado

Resumo

Depois de perder suas colônias na África, as potências europeias mantiveram ainda grande influência política e econômica sobre os países que surgiram, garantindo seus interesses econômicos no continente. Em parte, devido a isso, o continente tem sido palco de uma série de conflitos inter e intra-estatais e golpes de Estado. Este artigo busca analisar dois casos recentes de instabilidade na região: a recente série de golpes no Sahel e os conflitos envolvendo a Etiópia, mostrando não só como sinalizam mais um momento de instabilidade no continente, mas também como simbolizam de um momento de quebra de paradigma em reação ao controle neocolonial sob o qual ele tem vivido.

Conflito na África pós-colonial

Após sua abrupta descolonização, que ocorreu principalmente na década de 60, os nascentes países africanos foram assolados por instabilidade, golpes de Estado e guerras civis. Apesar disso, gradualmente o continente parecia se estabilizar; já em 1970, a perspectiva de movimentos separatistas obterem sucesso em redesenhar as fronteiras coloniais foi esmagada junto com Biafra [i] (Falola; Thomas, 2020), e a década de 80 é considerada o fim de uma “primeira onda” de golpes na África (Atta-Asamoah, 2023). Neste período, assim como no resto do mundo, o continente foi consumido pela rivalidade entre os Estados Unidos (EUA) e a União Soviética; a maioria dos conflitos que ocorreram consistiam de grupos alinhados aos interesses de um deles contra grupos alinhados ao outro. Apesar da quantidade de conflitos, o patrocínio de uma dessas potências garantia aos regimes patrocinados a capacidade financeira e militar de se proteger contra ameaças externas e internas e manter um mínimo de estabilidade (Falola; Thomas, 2020).

Com o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética em 1991, inicia-se um novo período de instabilidade instigado pela perda desse patrocínio e pelo novo precedente de aceitabilidade do separatismo estabelecido pela onda de novos Estados-nação que emergiram do antigo bloco comunista — a primeira vez que tantos novos países haviam surgido desde a própria descolonização africana (Falola; Thomas, 2020). Assim, a última década do século XX presenciou uma segunda onda de golpes no continente (Atta-Asamoah, 2023) e, notavelmente, a Segunda Guerra do Congo; a guerra mais sangrenta já travada desde o fim da Segunda Guerra Mundial (Bavier, 2008). Esse período também viu movimentos separatistas obterem sucesso na Eritréia, que ganhou independência da Etiópia em 1993, e no Sudão do Sul, cuja independência em 2011 fora negociada com intermediação dos EUA em 2004 após anos de guerra.

Com a virada do século, os ataques do onze de setembro, e a resultante “Guerra ao Terror”, a atenção internacional voltou novamente para a África. O financiamento provido à luta contra movimentos dissidentes vistos como terroristas permitiu então que os frágeis Estados africanos tivessem novamente a capacidade de garantir a supressão de revoltas e o monopólio da força em seus territórios (Falola; Thomas, 2020). Mesmo assim, bem como anteriormente, essa relativa estabilidade não parece que será duradoura e já se vê novamente ameaçada.

Uma nova onda de golpes na África Ocidental e a fraqueza da CEDEAO

A frequência de golpes de Estado na África voltou a aumentar, especialmente nos últimos três anos. Só em 2021 ocorreram golpes no Chade, no Mali, na Guiné e no Sudão, seguidos por dois no Burkina Faso em 2022, e então no Níger e no Gabão em 2023 — um fenômeno que já é considerado a terceira onda de golpes do continente (Atta-Asamoah, 2023)—, e isso não se deu sem apoio da população. Com um discurso de priorização da segurança e da soberania local, a chegada ao poder das juntas militares foi celebrada por grandes parcelas do povo que se viam descontentes com a disfuncionalidade das democracias locais e a insegurança trazida pelo conflito contra insurgentes jihadistas [ii], no caso dos países do Sahel [iii]. Os apoiadores viram então os golpes como respostas legítimas a governos fracos e sujeitos aos desejos das antigas potências coloniais, considerando os governos militares como promissores para garantir a sua segurança e os defender da influência europeia, principalmente da França (The Economist, 2023).

A impopularidade excepcional da França na região pode em grande parte ser atribuída às suas próprias ações. No final da década de 50, encarando a inevitabilidade da perda de suas colônias, o governo francês elaborou uma rede de acordos de cooperação econômica, militar, política e cultural para manter os novos países ligados a ela e firmemente em sua zona de influência (Whiteman, 1997). A criação dessa comunidade, mesmo que passando por referendos, foi de caráter coercitivo. O único país que votou pela independência completa, a Guiné, foi duramente punido com a retirada imediata de todos os funcionários públicos franceses que, ao saírem, causaram todo o dano que puderam: máquinas, móveis, documentos e até lâmpadas foram destruídas (French, 2024). Permanece também até hoje a moeda única da região, o Franco CFA, que é lastreada ao Euro, o que deixa os países que a usam incapazes de definir políticas monetárias independentemente da do Banco Central Europeu e cuja tarifa cambial desfavorável promove uma economia de exportação de matéria prima para a França, dificultando o desenvolvimento da região (Signé, 2019).

Voltando agora aos golpes recentes, pode-se observar outro aspecto dessa tendência, especialmente no Mali, Burkina Faso e Níger. Os três são países-membros da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental), um bloco regional que promove o desenvolvimento econômico e a democracia e tem importância fundamental para a estabilidade da região como plataforma de cooperação militar (Falola; Thomas, 2020). Em resposta às tomadas de poder, os três países foram suspensos do bloco e sancionados severamente — o Níger sendo até mesmo ameaçado de invasão pelos outros membros caso o primeiro-ministro deposto não fosse restituído. Após a ameaça não ter seguimento e vendo que tinham o apoio de suas respectivas populações, o trio anunciou que estavam saindo da CEDEAO e formando entre si uma nova “Aliança de Estados do Sahel”, acusando a Comunidade de ser sujeita à influência ocidental (Al Jazeera, 2024c). A resposta do bloco não poderia ter sido mais fraca — não apenas suspendeu as sanções, citando razões humanitárias, como implorou que eles voltassem atrás em sua decisão de sair, declarando que reveria a maneira com que lida com quebras de ordem constitucional em seus Estados-membros (Al Jazeera, 2024a).

Apesar das concessões, os três Estados do Sahel continuaram com seu realinhamento geopolítico, se voltando em direção à Rússia. As tropas francesas que estavam lá para combater os insurgentes jihadistas foram expulsas e substituídas por tropas russas do Africa Corps, o antigo Grupo Wagner, um grupo paramilitar antes privado e agora sob controle do governo desde a morte de seu antigo líder, Yevgeny Prigozhin (Africa Defense Forum, 2024b). Ocupando também o papel, antes francês, de financiador do desenvolvimento desses países, a Rússia rapidamente se comprometeu, entre outros projetos econômicos, com a construção de uma refinaria de ouro no Mali — cujo acesso poderá ser usado para financiar a sua guerra na Ucrânia (Africa Defense Forum, 2024a) — e a ajudar Mali e Burkina Faso no desenvolvimento de energia nuclear (Naranjo, 2024).

A Etiópia, a soberania e a autodeterminação no continente africano

Voltando agora a atenção ao Chifre da África [iv], também são relevantes os conflitos recentes envolvendo a Etiópia. O seu Primeiro-Ministro, Abiy Ahmed, recipiente do prêmio Nobel da Paz de 2019 (McKenna, 2019), lançou em 2020 uma brutal intervenção militar na região de Tigray, no noroeste do país. O conflito foi causado por discordâncias com o Tigray People’s Liberation Front (TPLF), um partido baseado na região, que havia governado o país por décadas antes do governo de Ahmed, protestando o adiamento da eleição devido ao Covid-19 e a reconfiguração do caráter étnico do partido governante. A guerra civil resultante se prolongou até o fim de 2023 e foi marcada por diversos relatos de atrocidades e crimes de guerra, incluindo o bloqueio proposital de entrada de comida na região, levando à fome (Haileselassie; Schwikowski, 2023).

Para além da situação doméstica, Abiy Ahmed tem também provocado tensões no âmbito regional. Em outubro do ano passado, ele declarou a falta de acesso ao mar como uma “questão existencial” para o país, gerando receios de um retorno do conflito com a Eritreia que não se realizaram. Entretanto, a solução encontrada para essa questão, mesmo que diplomática, não é livre de controvérsias. No dia 1 de janeiro de 2024, a Etiópia assinou um memorando de entendimento — um tipo de declaração não vinculante de intenções — com o país autodeclarado da Somalilândia, cujo território é internacionalmente reconhecido como parte da Somália. O memorando estabelece que, em troca da concessão de uma faixa de terra costeira para fins comerciais e navais por 50 anos e acesso ao porto de Berbera, a Etiópia se comprometeria a reconhecer a independência da república separatista em um futuro próximo.

Em resposta, a Somália reiterou sua reivindicação de soberania sobre o território da Somalilândia, recebendo apoio quase unânime da comunidade internacional (Bakonyi, 2024). Apesar disso, as partes do acordo continuam sem mostrar intenção de voltar atrás e as tensões continuam a escalar como com a recente expulsão do embaixador etíope do território somali (Al Jazeera, 2024d). Se o acordo seguir em frente, a Etiópia será o primeiro país a reconhecer oficialmente a república, que opera independentemente desde 1991. Esse reconhecimento iria contra o respeito à soberania e a integridade territorial que é promovido pela União Africana desde sua origem como a Organização de Unidade Africana em 1963 (Falola; Thomas, 2020) e arrisca provocar um conflito maior que poderia envolver não só os países já mencionados, mas também possivelmente o Egito, que também tem relações tensas com a Etiópia e já se posicionou em defesa da Somália (Al Jazeera, 2024b).

Considerações finais

As duas situações descritas não são só sinais de um possível novo período de instabilidade na África, como também têm um certo aspecto de declaração de independência e reação contra a influência ocidental. Tal reação se estende não só contra a influência direta, como a exercida pela França, mas também contra os valores liberais que são vistos como ocidentais, até por interesses próprios — a tomada do poder por juntas militares vai contra os princípios da democracia, e as ambições da Etiópia não são compatíveis com o respeito à soberania de seus vizinhos. Blocos como a CEDEAO e a União Africana, que se opõem a esses movimentos e foram fundados com base nesses valores liberais, acabam então virando também alvos dessa reação anti-colonial, sofrendo ataques que os enfraquecem como instituições fundamentais para a estabilidade africana. Por sua vez, a Rússia, apesar de seus interesses similarmente neocoloniais, não se torna alvo, pois não está “manchada” com o histórico dos outros países europeus. Também em busca de aliados devido a seu próprio isolamento, ela se coloca disposta a cooperar com qualquer país africano que for punido por ir contra valores ou interesses ocidentais, reforçando a viabilidade desses projetos.

Os acontecimentos analisados representam então uma quebra da África com o Ocidente e seu antigo paradigma de submissão a ele. As juntas militares do oeste africano, ao se posicionarem fortemente contra a influência ocidental na região, e a Etiópia, ao jogar o jogo das grandes potências e violar a soberania de um país mais fraco em nome de seus interesses, reivindicam sua autonomia como atores no cenário internacional e, sobretudo, em seu próprio continente. A nova África que surgirá depois disto, seja ela uma África mais independente, mais conflituosa, mais próspera, mais instável, ou mesmo uma meramente sob o controle de uma nova potência estrangeira, será fundamentalmente diferente da que vemos hoje em dia.

Referências

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AL JAZEERA. Somalia expels ethiopian ambassador amid Somaliland port deal dispute. 4 abr. 2024d. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2024/4/4/somalia-expels-ethiopian-ambassador-amid-somaliland-port-deal. Acesso em: 7 abr. 2024.

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HAILESELASSIE, Million; SCHWIKOWSKI, Martina. Ethiopia’s Tigray region stumbles towards peace. 1 nov. 2023. Disponível em: https://www.dw.com/en/tigray-stumbles-towards-peace-a-year-after-war/a-67256279. Acesso em: 22 mar. 2024.

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Notas

i. Biafra foi um Estado secessionista parcialmente reconhecido que lutou pela sua independência da Nigéria entre 1967 e 1970.

ii. Termo usado comumente para se referir a grupos islâmicos extremistas e violentos. Importante notar, contudo, que no islam, o Jihad pode ser qualquer luta vista como justa, e a maioria dos mulçumanos não considera tais grupos como praticantes do “verdadeiro” Jihad (Afsaruddin, 2024).

iii. Nome dado à faixa de transição entre o Saara e as florestas tropicais mais ao sul. Dos países mencionados anteriormente que sofreram golpes de Estado recentemente, apenas o Gabão não se encontra lá. iv. Região do nordeste africano que consiste d

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