Larissa Silva Ferreira
Resumo
Desde sua independência em 1804, o Haiti enfrenta crises de dimensões múltiplas. Com sucessivos golpes de Estado, governos ditatoriais, presença estrangeira constante e agravado por desastres naturais, o pequeno país do Caribe é hoje o mais pobre das Américas. Após o assassinato do presidente Jovenel Moise em 2021, o Haiti vive um novo momento de caos social, político e econômico. O presente artigo busca analisar historicamente a realidade haitiana e como isso contribuiu para a situação atual do país.
Contextualização histórica
O Haiti é um país localizado no Mar do Caribe, a oeste da República Dominicana, com cerca de 11,5 milhões de habitantes. Foi uma colônia francesa, conhecida como “Pérolas das Antilhas” devido a produção lucrativa de cana de açúcar e foi uma das colônias mais ricas do período. Por meio de uma revolução liderada por negros escravizados e libertos, o Haiti se tornou o primeiro país das Américas a conquistar a abolição da escravatura em 1794, e o segundo a declarar independência, em 1804. Sendo a primeira nação cuja independência foi liderada por negros, enfrentou uma série de embargos após sua emancipação. Diversos países se recusaram a reconhecer o Haiti como um Estado independente, temendo que isso poderia incentivar as demais colônias em suas lutas por independência. E, temendo a reconquista do país por parte da França, o Haiti aceitou a imposição francesa para reconhecimento da autonomia política do país e pagou-lhes uma indenização de 150 mil francos, quitada apenas em 1947, o que durante todo o período seguinte estrangulou ainda mais a já frágil economia haitiana (Verenhitach, 2008; Bissindé, 2019).
Entre 1915 e 1934, os Estados Unidos ocuparam militarmente o Haiti. Motivada principalmente pela defesa dos interesses econômicos de empresas americanas no país, no período os EUA passaram a controlar a alfândega haitiana e introduziram uma série de mudanças nas estruturas políticas e econômicas do país, criando uma situação de dependência que perdura até os dias de hoje (Bissindé, 2019). Os quase vinte anos de ocupação foram marcados por repressão política, aprofundamento da dependência econômica e ainda para o estabelecimento da Guarda Nacional Haitiana, que em substituição ao Exército Nacional -, este de forte viés nacionalista mas que fora destituído durante a ocupação -, se constituiu como um instrumento de força repressiva para manutenção dos interesses da elite nacional (Andrade, 2016).
Mesmo com o fim da ocupação, os Estados Unidos seguiram pelas décadas seguintes a influenciar a política haitiana para manutenção dos seus interesses econômicos. O Haiti seguiu pelos anos posteriores marcado por fortes crises políticas, com a ausência de um ambiente que permitisse a consolidação de instituições nacionais com coesão para acolher as demandas das classes sociais não dominantes e para o estabelecimento de um regime político democrático. O período posterior à ocupação, marcado pela disputa de poder entre negros e mulatos [1], chegou temporariamente ao fim com a eleição do médico François Duvalier em 1957, que instaurou uma ditadura no país, sucedida pelo seu filho Jean-Claude.
Conhecido popularmente como Papa Doc, Duvalier após eleito desenvolveu uma política baseada em um nacionalismo pró negro, de defesa pela igualdade com a elite mulata, com forte repressão aos opositores do regime e com graves violações de direitos humanos. Extinguiu a Guarda Nacional Haitiana e criou o Voluntários para a Segurança Nacional (VSN), força paramilitar a serviço direto do ditador, que garantia a manutenção da ordem pública através do uso massivo da violência (Bissindé, 2019). Duvalier governou o país até sua morte, em 1971, quando foi substituído pelo seu filho, Jean-Claude Duvalier, que governou até o fim em 1986, após constantes protestos contra seu regime e em um novo golpe militar que o depôs (Bissindé, 2023).
O processo de redemocratização do país só ocorreu em 1990, com a eleição de Jean-Bertrand Aristide, padre salesiano que defendia a reforma agrária, a distribuição de renda e a alfabetização em massa. Mas já em 1991, o presidente eleito foi deposto por um golpe militar e retornou ao poder em 1994 por apoio dos Estados Unidos, Organização dos Estados Americanos e da ONU. Após um breve hiato (entre 1996 e 1999), Aristide foi eleito para um segundo mandato em 2000 sob acusações de fraude nas eleições e em contexto de maior proliferação de grupos armados civis e de piora das condições de vida para a população (Verenhitach, 2008). Diante do caos social, em 2004 Aristide é retirado do país à força por pressão de militares estadunidenses com apoio dos franceses (Moraes et al, 2013).
A primeira operação da ONU no Haiti aconteceu em 1993, mas a mais duradoura foi a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH), estabelecida pela Resolução 1542 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU),cujos principais objetivos eram: o estabelecimento de um entorno seguro e estável; a proteção dos direitos humanos; e a realização de eleições pacíficas e democráticas. Iniciada em 2004 e com previsão de término após seis meses, a operação durou treze anos. A MINUSTAH foi liderada pelo Brasil e contou com a presença de cerca de 30.378 mil soldados brasileiros ao longo da operação. A iniciativa multilateral não contou com apoio unânime por parte da população haitiana, havendo ainda uma série de denúncias durante 2007 a 2017 de abusos sexuais cometidos por membros das forças de paz, mas que ainda hoje seguem sem quaisquer investigações por parte da ONU (Charleaux, 2017).
No período da missão, o Haiti sofreu em 2010 um grande terremoto que destruiu a maior parte da capital Porto Príncipe, deixando cerca de 200 mil habitantes mortos e mais milhares desabrigados. Somado à ausência de infraestrutura adequada, a dependência por ajuda externa aumentou consideravelmente e um novo fluxo de migrações a países como Estados Unidos e mesmo para o Brasil, se intensificou desse período em diante (Moraes et al, 2013).
Mesmo após a missão multilateral no país, a instabilidade política permaneceu. Em julho de 2021 o então presidente, Jouvenel Moise, foi assassinado a tiros dentro de casa, na capital Porto Príncipe, em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas. Eleito em 2016, Moise, suspendeu em 2019 eleições legislativas e governou principalmente por meio de decretos, à época, Moise propôs uma reforma constitucional para a criação de mandatos presidenciais ilimitados. O governo de Moise enfrentava desde 2019 uma onda de protestos com pedidos de renúncia devido à situação ruim da segurança pública no país, contra o aumento no preço dos combustíveis provocado pelo fim dos subsídios à energia, e à escassez de gasolina e de alimentos (Perry, 2019).
Após a morte de Moise, o primeiro-ministro Ariel Henry assumiu interinamente a presidência, em meio a falta de apoio popular e da ascensão da guerra de facções criminosas e de protestos por causa dos problemas econômicos. Desde então Henry vinha sofrendo pressão por parte das gangues do país para renunciar ao cargo, que intensificaram os confrontos entre si para o controle de territórios. As eleições que deveriam ser realizadas em 2022, foram adiadas devido à morte do presidente Moise e em 2023, Ariel Henry criou um conselho de transição responsável por realizar e organizar as eleições, mas que foram sucessivamente adiadas devido ao aumento dos assassinatos e sequestros relacionados às gangues em todo o país (G1, 2024).
Em fevereiro de 2024, Ariel Henry deixou o país para participar de evento entre países da América do Sul e Caribe, o Caricom, na Guiana. Em seguida, viajou para o Quênia, para negociar o envio de forças policiais quenianas para o Haiti em missão apoiada pela ONU para a pacificação do país. Durante a missão internacional, criminosos tomaram as principais prisões do país e libertaram cerca de quatro mil detentos, levando o governo a decretar estado de emergência em meio a ameaças para que o primeiro-ministro renunciasse (BBC, 2024).
Em outubro de 2023, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma missão para apoio à polícia nacional haitiana, sendo nesse sentido, diferente da operação militar da MINUSTAH porque não será uma operação oficial da ONU, mas terceirizada, com liderança do Quênia (Montani, 2023). A operação deveria ter começado em primeiro de janeiro de 2024, mas devido a problemas políticos internos no Quênia e ao escalonamento da violência do Haiti, foi adiada. Nesse ínterim, Henry foi impossibilitado de retornar ao país e renunciou ao cargo em março de 2024, garantindo o estabelecimento de um Conselho Presidencial transitório até a realização de novas eleições (O Globo, 2024). No dia 30 de abril, Edgard Leblanc Fils, ex -senador e opositor à Henry, foi eleito como presidente do órgão de governo (O Globo, 2024).
Considerações finais
Conforme apontado nas seções anteriores, dois séculos e meio após sua independência o Haiti ainda hoje é marcado por intervenções e pela exploração de potências estrangeiras. Mesmo sob aspirações iluministas da Revolução Francesa, a primeira revolução negra das Américas foi punida pelas potências imperiais através do isolamento comercial e diplomático, o que contribuiu para a dificuldade de desenvolvimento econômico e social autônomo do país, colaborando para a situação de pobreza e para a instabilidade política constante.
Para além dos desastres naturais ou a corrupção e brutalidade dos governos em poder no Haiti, o que se percebe na história do país, é a continuação das consequências do colonialismo e do neocolonialismo como elementos ainda centrais das estruturas sociais, econômicas e políticas, que geram uma situação de eterna dependência de ajuda externa. A recente crise se soma a um problema endêmico do país que possui dificuldades para o estabelecimento de instituições estatais consistentes e que atendam aos interesses da população. O estabelecimento de uma nova intervenção internacional pode contribuir momentaneamente para o estabelecimento da ordem, mas uma verdadeira reconstrução do país, necessita de reparação histórica e de cooperação internacional para não apenas conter a violência no país e a migração, mas com a participação ativa da população, para que o Haiti possa de fato se tornar independente.
ANDRADE, E. O. A primeira ocupação militar dos EUA no Haiti e as origens do totalitarismo haitiano. Revista Eletrônica da ANPHLAC, [S. l.], n. 20, p. 173–196, 2016. DOI: 10.46752/anphlac.20.2016.2492. Disponível em: https://anphlac.emnuvens.com.br/anphlac/article/view/2492 . Acesso em: 22 abr. 2024.
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BBC. A fuga de 4 mil presos que levou Haiti a decretar emergência contra facções. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp9ezmwm0x0o#:~:text=O%20governo%20do%20Haiti%20declarou,cerca%20de%204%20mil%20presos> Acesso em 22 abr. 2024
CHARLEAUX, João Paulo. Qual o balanço da missão de paz brasileira no Haiti. Nexo Jornal. 25 abr. 2017. Disponivel em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/04/25/Qual-o-balan%C3%A7o-da-miss%C3%A3o-de-paz-brasileira-no-Haiti> Acesso em 23 abr. 2024.
DE MORAES, I. A.; DE ANDRADE, C. A. A.; MATTOS, B. R. B. A imigração haitiana para o Brasil: causas e desafios. Conjuntura Austral, [S. l.], v. 4, n. 20, p. 95–114, 2013. DOI: 10.22456/2178-8839.35798. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/ConjunturaAustral/article/view/35798. Acesso em: 24 abr. 2024.
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VERENHITACH, Gabriela Daou. A MINUSTAH e a política externa brasileira: motivações e consequências. Dissertação de mestrado. 28 set. 2008. Disponível em:<https://repositorio.ufsm.br/handle/1/9701> Acesso em 22 de abr. 2024.
Notas
[1] Apesar da conotação pejorativa, no contexto da história haitiana, mulatos se referem ao grupo de indivíduos mestiços descendentes do resultado da miscigenação entre africanos escravizados nas américas e brancos europeus colonizadores. À época do período colonial, esse grupo possuía maior autonomia social, política e econômica em comparação à população negra, situação que se manteve mesmo após a independência, e por isso, a raça é um elemento de divisão sócio político marcante na sociedade haitiana ainda hoje. Nas revoltas por independência, os dois grupos se uniram, mas após a libertação, essa cisão racial se manteve e é, ainda hoje, ponto de disputa haja visto que os ‘mulatos’ constituem a elite economicamente dominante do país.