Violência sistêmica e colonialismo no Haiti

Larissa Silva Ferreira

Resumo

Desde sua independência em 1804, o Haiti enfrenta crises de dimensões múltiplas. Com sucessivos golpes de Estado, governos ditatoriais, presença estrangeira constante e agravado por desastres naturais, o pequeno país do Caribe é hoje o mais pobre das Américas. Após o assassinato do presidente Jovenel Moise em 2021, o Haiti vive um novo momento de caos social, político e econômico. O presente artigo busca analisar historicamente a realidade haitiana e como isso contribuiu para a situação atual do país.

Contextualização histórica

O Haiti é um país localizado no Mar do Caribe, a oeste da República Dominicana, com cerca de 11,5 milhões de habitantes. Foi uma colônia francesa, conhecida como “Pérolas das Antilhas” devido a produção lucrativa de cana de açúcar e foi uma das colônias mais ricas do período. Por meio de uma revolução liderada por negros escravizados e libertos, o Haiti se tornou o primeiro país das Américas a conquistar a abolição da escravatura em 1794, e o segundo a declarar independência, em 1804. Sendo a primeira nação cuja independência foi liderada por negros, enfrentou uma série de embargos após sua emancipação. Diversos países se recusaram a reconhecer o Haiti como um Estado independente, temendo que isso poderia incentivar as demais colônias em suas lutas por independência. E, temendo a reconquista do país por parte da França, o Haiti aceitou a imposição francesa para reconhecimento da autonomia política do país e pagou-lhes uma indenização de 150 mil francos, quitada apenas em 1947, o que durante todo o período seguinte estrangulou ainda mais a já frágil economia haitiana (Verenhitach, 2008; Bissindé, 2019).

Entre 1915 e 1934, os Estados Unidos ocuparam militarmente o Haiti. Motivada principalmente pela defesa dos interesses econômicos de empresas americanas no país, no período os EUA passaram a controlar a alfândega haitiana e introduziram uma série de mudanças nas estruturas políticas e econômicas do país, criando uma situação de dependência que perdura até os dias de hoje (Bissindé, 2019). Os quase vinte anos de ocupação foram marcados por repressão política, aprofundamento da dependência econômica e ainda para o estabelecimento da Guarda Nacional Haitiana, que em substituição ao Exército Nacional -, este de forte viés nacionalista mas que fora destituído durante a ocupação -, se constituiu como um instrumento de força repressiva para manutenção dos interesses da elite nacional (Andrade, 2016). 

Mesmo com o fim da ocupação, os Estados Unidos seguiram pelas décadas seguintes a influenciar a política haitiana para manutenção dos seus interesses econômicos. O Haiti seguiu pelos anos posteriores marcado por fortes crises políticas, com a ausência de um ambiente que permitisse a consolidação de instituições nacionais com coesão para acolher as demandas das classes sociais não dominantes e para o estabelecimento de um regime político democrático. O período posterior à ocupação, marcado pela disputa de poder entre negros e mulatos [1], chegou temporariamente ao fim com a eleição do médico François Duvalier em 1957, que instaurou uma ditadura no país, sucedida pelo seu filho Jean-Claude.

Conhecido popularmente como Papa Doc, Duvalier após eleito desenvolveu uma política baseada em um nacionalismo pró negro, de defesa pela igualdade com a elite mulata, com forte repressão aos opositores do regime e com graves violações de direitos humanos. Extinguiu a Guarda Nacional Haitiana e criou o Voluntários para a Segurança Nacional (VSN), força paramilitar a serviço direto do ditador, que garantia a manutenção da ordem pública através do uso massivo da violência (Bissindé, 2019). Duvalier governou o país até sua morte, em 1971, quando foi substituído pelo seu filho, Jean-Claude Duvalier, que governou até o fim em 1986, após constantes protestos contra seu regime e em um novo golpe militar que o depôs (Bissindé, 2023).

O processo de redemocratização do país só ocorreu em 1990, com a eleição de Jean-Bertrand Aristide, padre salesiano que defendia a reforma agrária, a distribuição de renda e a alfabetização em massa. Mas já em 1991, o presidente eleito foi deposto por um golpe militar e retornou ao poder em 1994 por apoio dos Estados Unidos, Organização dos Estados Americanos e da ONU. Após um breve hiato (entre 1996 e 1999), Aristide foi eleito para um segundo mandato em 2000 sob acusações de fraude nas eleições e em contexto de maior proliferação de grupos armados civis e de piora das condições de vida para a população (Verenhitach, 2008). Diante do caos social, em 2004 Aristide é retirado do país à força por pressão de militares estadunidenses com apoio dos franceses (Moraes et al, 2013).

O MINUSTAH

A primeira operação da ONU no Haiti aconteceu em 1993, mas a mais duradoura foi a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH), estabelecida pela Resolução 1542 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU),cujos principais objetivos eram: o estabelecimento de um entorno seguro e estável; a proteção dos direitos humanos; e a realização de eleições pacíficas e democráticas. Iniciada em 2004 e com previsão de término após seis meses, a operação durou treze anos. A MINUSTAH foi liderada pelo Brasil e contou com a presença de cerca de 30.378 mil soldados brasileiros ao longo da operação. A iniciativa multilateral não contou com apoio unânime por parte da população haitiana, havendo ainda uma série de denúncias durante 2007 a 2017 de abusos sexuais cometidos por membros das forças de paz, mas que ainda hoje seguem sem quaisquer investigações por parte da ONU (Charleaux, 2017).

No período da missão, o Haiti sofreu em 2010 um grande terremoto que destruiu a maior parte da capital Porto Príncipe, deixando cerca de 200 mil habitantes mortos e mais milhares desabrigados. Somado à ausência de infraestrutura adequada, a dependência por ajuda externa aumentou consideravelmente e um novo fluxo de migrações a países como Estados Unidos e mesmo para o Brasil, se intensificou desse período em diante (Moraes et al, 2013).

A crise política atual

Mesmo após a missão multilateral no país, a instabilidade política permaneceu. Em julho de 2021 o então presidente, Jouvenel Moise, foi assassinado a tiros dentro de casa, na capital Porto Príncipe, em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas. Eleito em 2016, Moise, suspendeu em 2019 eleições legislativas e governou principalmente por meio de decretos, à época, Moise propôs uma reforma constitucional para a criação de mandatos presidenciais ilimitados. O governo de Moise enfrentava desde 2019 uma onda de protestos com pedidos de renúncia devido à situação ruim da segurança pública no país, contra o aumento no preço dos combustíveis provocado pelo fim dos subsídios à energia, e à escassez de gasolina e de alimentos (Perry, 2019).

Após a morte de Moise, o primeiro-ministro Ariel Henry assumiu interinamente a presidência, em meio a falta de apoio popular e da ascensão da guerra de facções criminosas e de protestos por causa dos problemas econômicos. Desde então Henry vinha sofrendo pressão por parte das gangues do país para renunciar ao cargo, que intensificaram os confrontos entre si para o controle de territórios. As eleições que deveriam ser realizadas em 2022, foram adiadas devido à morte do presidente Moise e em 2023, Ariel Henry criou um conselho de transição responsável por realizar e organizar as eleições, mas que foram sucessivamente adiadas devido ao aumento dos assassinatos e sequestros relacionados às gangues em todo o país (G1, 2024).

Em fevereiro de 2024, Ariel Henry deixou o país para participar de evento entre países da América do Sul e Caribe, o Caricom, na Guiana. Em seguida, viajou para o Quênia, para negociar o envio de forças policiais quenianas para o Haiti em missão apoiada pela ONU para a pacificação do país. Durante a missão internacional, criminosos tomaram as principais prisões do país e libertaram cerca de quatro mil detentos, levando o governo a decretar estado de emergência em meio a ameaças para que o primeiro-ministro renunciasse (BBC, 2024).

Em outubro de 2023, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma missão para apoio à polícia nacional haitiana, sendo nesse sentido, diferente da operação militar da MINUSTAH porque não será uma operação oficial da ONU, mas terceirizada, com liderança do Quênia (Montani, 2023). A operação deveria ter começado em primeiro de janeiro de 2024, mas devido a problemas políticos internos no Quênia e ao escalonamento da violência do Haiti, foi adiada. Nesse ínterim, Henry foi impossibilitado de retornar ao país e renunciou ao cargo em março de 2024, garantindo o estabelecimento de um Conselho Presidencial transitório até a realização de novas eleições (O Globo, 2024). No dia 30 de abril, Edgard Leblanc Fils, ex -senador e opositor à Henry, foi eleito como presidente do órgão de governo (O Globo, 2024).

Considerações finais

Conforme apontado nas seções anteriores, dois séculos e meio após sua independência o Haiti ainda hoje é marcado por intervenções e pela exploração de potências estrangeiras. Mesmo sob aspirações iluministas da Revolução Francesa, a primeira revolução negra das Américas foi punida pelas potências imperiais através do isolamento comercial e diplomático, o que contribuiu para a dificuldade de desenvolvimento econômico e social autônomo do país, colaborando para a situação de pobreza e para a instabilidade política constante.

Para além dos desastres naturais ou a corrupção e brutalidade dos governos em poder no Haiti, o que se percebe na história do país, é a continuação das consequências do colonialismo e do neocolonialismo como elementos ainda centrais das estruturas sociais, econômicas e políticas, que geram uma situação de eterna dependência de ajuda externa. A recente crise se soma a um problema endêmico do país que possui dificuldades para o estabelecimento de instituições estatais consistentes e que atendam aos interesses da população. O estabelecimento de uma nova intervenção internacional pode contribuir momentaneamente para o estabelecimento da ordem, mas uma verdadeira reconstrução do país, necessita de reparação histórica e de cooperação internacional para não apenas conter a violência no país e a migração, mas com a participação ativa da população, para que o Haiti possa de fato se tornar independente.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, E. O. A primeira ocupação militar dos EUA no Haiti e as origens do totalitarismo haitiano. Revista Eletrônica da ANPHLAC, [S. l.], n. 20, p. 173–196, 2016. DOI: 10.46752/anphlac.20.2016.2492. Disponível em: https://anphlac.emnuvens.com.br/anphlac/article/view/2492 . Acesso em: 22 abr. 2024.

AUGUSTO BISSINDÉ, C.- NATÉ. AS RELAÇÕES ENTRE HAITI E ESTADOS UNIDOS:: DEPENDÊNCIA E HEGEMONIA. Hoplos Revista de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais, v. 7, n. 12, p. 108-124, 25 jul. 2023. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/hoplos/article/view/57551> Acesso em 22 abr. 2024.

AUGUSTO BISSINDÉ, C.- NATÉ. AS RELAÇÕES ENTRE HAITI E ESTADOS UNIDOS:: DEPENDÊNCIA E HEGEMONIA. Hoplos Revista de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais, v. 7, n. 12, p. 108-124, 25 jul. 2023.

BBC. A fuga de 4 mil presos que levou Haiti a decretar emergência contra facções. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp9ezmwm0x0o#:~:text=O%20governo%20do%20Haiti%20declarou,cerca%20de%204%20mil%20presos&gt; Acesso em 22 abr. 2024

CHARLEAUX, João Paulo. Qual o balanço da missão de paz brasileira no Haiti. Nexo Jornal. 25 abr. 2017. Disponivel em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/04/25/Qual-o-balan%C3%A7o-da-miss%C3%A3o-de-paz-brasileira-no-Haiti> Acesso em 23 abr. 2024.

DE MORAES, I. A.; DE ANDRADE, C. A. A.; MATTOS, B. R. B. A imigração haitiana para o Brasil: causas e desafios. Conjuntura Austral, [S. l.], v. 4, n. 20, p. 95–114, 2013. DOI: 10.22456/2178-8839.35798. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/ConjunturaAustral/article/view/35798. Acesso em: 24 abr. 2024.

G1. Conheça a história do primeiro-ministro que não consegue voltar para o próprio país por causa da violência de gangues. 08 mar. 2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/03/08/conheca-a-historia-do-primeiro-ministro-que-nao-consegue-voltar-para-o-proprio-pais-por-causa-da-violencia-de-gangues.ghtml> Acesso em: 21 de abr. 2024.

MONTANINI, Marcelo. A nova missão externa num Haiti assolado pela violência. Nexo Jornal. 03 out. 2023. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/10/03/a-nova-missao-externa-num-haiti-assolado-pela-violencia> Acesso em 22 abr. 2021.

O GLOBO. Quênia condiciona envio de missão policial ao Haiti à formação de novo governo após renúncia de premier. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/03/12/quenia-condiciona-envio-de-missao-policial-ao-haiti-a-formacao-de-novo-governo-apos-renuncia-de-premier.ghtml&gt; Acesso em 24 abr. 2024

O GLOBO. Conselho de transição do Haiti escolhe presidente e primeiro-ministro interinos. Disponivel em: <https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/04/30/conselho-de-transicao-do-haiti-escolhe-presidente-e-primeiro-ministro-interinos.ghtml> Acesso em 03 mai. 2024

PERRY, Keston. What is really behind the crisis in Haiti? Al Jazeera. 30 set. 2019. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/opinions/2019/9/30/what-is-really-behind-the-crisis-in-haiti&gt; Acesso em: 21 abr. 2024.

VERENHITACH, Gabriela Daou. A MINUSTAH e a política externa brasileira: motivações e consequências. Dissertação de mestrado. 28 set. 2008. Disponível em:<https://repositorio.ufsm.br/handle/1/9701> Acesso em 22 de abr. 2024.

Notas

[1] Apesar da conotação pejorativa, no contexto da história haitiana, mulatos se referem ao grupo de indivíduos mestiços descendentes do resultado da miscigenação entre africanos escravizados nas américas e brancos europeus colonizadores. À época do período colonial, esse grupo possuía maior autonomia social, política e econômica em comparação à população negra, situação que se manteve mesmo após a independência, e por isso, a raça é um elemento de divisão sócio político marcante na sociedade haitiana ainda hoje. Nas revoltas por independência, os dois grupos se uniram, mas após a libertação, essa cisão racial se manteve e é, ainda hoje, ponto de disputa haja visto que os ‘mulatos’ constituem a elite economicamente dominante do país.

Publicado em América Central, Conflitos e crise, Haiti | Deixe um comentário

A guerra civil sudanesa e o impacto no Chade: o papel das organizações internacionais na mitigação das consequências de uma nova crise migratória

Heloísa Visconti Silva

Resumo

Em abril de 2023, no Sudão, se iniciou um novo conflito armado, que inaugurou um novo período de sofrimento humano e destruição de infraestrutura no país. Como resultado, milhares de cidadãos se viram obrigados a deixar suas casas à procura de segurança, buscando refúgio além das fronteiras nacionais. Nesse contexto, o Chade emerge como um dos principais destinos para esses refugiados. Assim, este artigo inicialmente aborda o conflito no Sudão, apontando as suas repercussões no oeste do país. Em seguida, serão analisadas as consequências sociais da nova crise migratória enfrentada pelo Chade, além da atuação e os impasses de organizações internacionais na tentativa de mitigar essa crise.

O início e a propagação da guerra: da capital ao oeste sudanês

No dia 15 de abril de 2023, em Cartum — capital do Sudão — surgiu um cenário que sinalizava o início de uma nova guerra civil no país. Conflitos armados entre paramilitares e forças do governo eclodiram em meio a um governo militar ilegítimo, instaurado no país em outubro de 2021 (Assal, 2023). 

Pouco tempo antes, em 2019, após prolongadas negociações entre civis, representados pela Força para Liberdade e Mudança, e militares, representados pelo Conselho Militar de Transição, foi estabelecido um governo de transição no Sudão. Inicialmente, a implementação desse governo representou uma notável colaboração política, unindo civis e militares em uma aliança sem precedentes no país, que estava sob o regime autoritário de Omar al-Bashir desde a década de 1990. No entanto, ainda em 2019, nota-se uma série de discordâncias entre os dois grupos que compunham o governo de transição, resultando em sabotagens e dificultando a implementação de reformas constitucionais que permitissem a consolidação da democracia no Sudão. Em 2021, constata-se uma falta de coesão entre os membros da Força para Liberdade e Mudança. Essa fragmentação exacerbou a fragilidade política do Sudão, criando condições para que dois grupos paramilitares, derivados da coalizão militar integrante do governo de transição, organizassem um golpe de estado. Assim, membros das Forças Armadas do Sudão, sob a liderança do General al-Burhan, em cooperação com as Forças de Apoio Rápido [i], lideradas pelo General Mohamed Hamdan Dagalo, também conhecido como Hemedti, efetivaram o golpe (Assal, 2023).

Ainda no mesmo ano, Burhan assumiu a liderança do país, dando continuidade à longa tradição do Sudão de ser governado, predominantemente, por líderes militares. Mais tarde, emergiram demandas mais intensas das Forças de Apoio Rápido. Hemedti exigia, principalmente, que essas forças fossem incorporadas às Forças Armadas do Sudão. No entanto, o presidente opôs-se à demanda. Essa situação, evidenciou, para os próprios integrantes dos grupos paramilitares, que um confronto estava se tornando cada vez mais provável. Isso ficou claro quando, percebendo o ambiente de crescente insegurança, ambas as coalizões iniciaram um recrutamento agressivo de membros. Essas campanhas de recrutamento aconteceram especialmente em Darfur, uma vez que as forças já estavam significativamente presentes na região (UNSC, 2023).

De fato, o não atendimento às demandas de Hemedti desencadeou uma nova tentativa de golpe por parte das Forças de Apoio Rápido, que então, no dia 15 de abril de 2023, iniciaram uma série de ataques à pequenas empresas e fábricas, hospitais e instalações do governo sudanês em Cartum, centro político e econômico do país, dando início à guerra civil (Assal, 2023). Assim, com o desenrolar da guerra, as consequências passaram a afetar outras regiões. Isso porque Cartum é a cidade onde a maioria das fábricas produtoras de alimentos estava localizada, abastecendo todo o país (Insecurity Insight, 2023).

Simultaneamente, Darfur — região oeste do Sudão — ascende como o segundo epicentro do conflito. Nessa área, assim como em Cartum, bombardeios e ataques a áreas povoadas persistem, causando danos significativos às infraestruturas locais. A emergência dos conflitos em Darfur pode ser atribuída, principalmente, à interconexão dos conflitos dentro do país. Em primeiro lugar, destaca-se que as coalizões envolvidas no conflito em Cartum já possuíam uma forte capacidade de mobilização em Darfur. Isso porque, membros, que agora fazem parte das coalizões que estão em confronto, desempenharam papel significativo em um conflito que eclodiu em Darfur em 2003 [ii], e ainda não haviam abandonado a região. Além disso, Darfur ainda estava se recuperando das consequências deste conflito, tornando a região ainda mais vulnerável aos novos episódios de violência. Adicionalmente, o recrutamento intenso, coagiu membros a se juntarem às forças, o que contribuiu para a separação de famílias e causou perda de mão de obra essencial para a realização das atividades locais (International IDEA, 2024).

A migração para o Chade: escala e consequências

A situação de violência no Sudão, particularmente em Darfur e Cartum, tem impedido as comunidades de acessar meios de subsistência, mercados e terras agrícolas, aumentando, consideravelmente, a insegurança alimentar. Como resultado, milhares de pessoas se viram obrigadas a deixar suas casas em busca de segurança, tanto em outras partes do Sudão quanto em países vizinhos, como o Chade. Este último, em conflitos anteriores, já acolheu cerca de 400 mil sudaneses em busca de proteção, tornando-se o principal receptor desses refugiados. Essa situação pode ser justificada não apenas pela sua proximidade geográfica com o Sudão, mas também pelas relações migratórias historicamente significativas, uma vez que as fronteiras entre esses países foram estabelecidas de forma a separar pessoas pertencentes aos mesmos grupos étnicos (Acted, s.d; Mugadam, 2022).

Devido à guerra civil no Sudão, em 2024, a posição do Chade como o principal país receptor de refugiados sudaneses foi reafirmada. Em março, o número desses refugiados no Chade chegava a pouco mais de meio milhão de pessoas, e continua a aumentar (UNHCR, 2024). Diante da a persistência dos conflitos e o contínuo aumento no fluxo de imigrantes, em fevereiro de 2024, o governo do Chade declarou uma “emergência alimentar e nutricional” e divulgou que estima que o número de refugiados e de chadianos que, anteriormente, haviam sido repatriados no Sudão e agora retornam ao Chade, pode atingir mais de 900 mil até o final deste ano (UNHCR, 2024; WFP Chad, 2024).

O crescimento repentino e exorbitante nesse número indica uma crise humanitária em curso no Chade, particularmente preocupante porque impõe uma pressão significativa sobre os recursos do país. Os domínios de infraestrutura médica, educação e abastecimento alimentar são especialmente afetados. É importante ressaltar que esta infraestrutura já estava sofrendo deterioração devido aos crescentes desafios humanitários enfrentados pelos chadianos, incluindo deslocamentos forçados em decorrência de conflitos internos, além da insegurança alimentar (OCHA, 2023). Assim, o recebimento repentino de um número exorbitante de refugiados do Sudão deixou claro o eventual esforço que organizações internacionais teriam para apoiar o governo do Chade no acolhimento adequado de todas as pessoas que agora encontram-se dentro de suas fronteiras.

O papel das organizações internacionais

No início da guerra no Sudão, foi possível observar um grande número de trabalhadores humanitários atuando em apoio ao governo chadiano, com o objetivo de mitigar as consequências da crise migratória. Em geral, as organizações internacionais trabalham construindo novos assentamentos para refugiados e os reassentando em comunidades de acolhimento anteriormente estabelecidas. Além disso, auxiliam no deslocamento seguro, providenciam cuidados médicos, distribuem alimentos e promovem atividades que estimulam a autossuficiência das comunidades locais. Sob a liderança do governo do Chade e da Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), até fevereiro de 2024, equipes humanitárias já haviam realocado 44% dos refugiados sudaneses (UNHCR, 2024).

Vista a escalada do número de refugiados, a insegurança alimentar representa uma preocupação particular, uma vez que, antes da eclosão do conflito no Sudão milhões de chadianos já enfrentavam desnutrição aguda, em decorrência das consequências das mudanças climáticas, que reduziram a produção agrícola. Neste caso, o PMA (Programa Mundial de Alimentos) desempenha papel fundamental ao fornecer assistência alimentar e nutricional aos refugiados (UN News, 2023; WFP Chad, 2024).

No entanto, as atenções mundiais têm sido direcionadas para outros assuntos, como o conflito em Gaza e a Guerra da Ucrânia. Assim, o apoio financeiro às organizações internacionais, e consequentemente, o suporte à assistência humanitária aos refugiados sudaneses no Chade está sendo reduzido. Em dezembro de 2023, foi publicado um alerta de que a assistência alimentar das Nações Unidas estava se esgotando. Notadamente, entre novembro de 2023 e março de 2024, o PMA enfrentou uma terrível falta de financiamento, o que fez com que as atividades humanitárias dos seus programas em curso fossem significativamente reduzidas (UN News, 2023). Essa situação é particularmente preocupante considerando o histórico de busca de refúgio dos indivíduos que são forçados a abandonar suas regiões de origem. Estes tendem a se submeter a desafiadoras jornadas em direção a outros continentes, durante as quais eles estão sujeitos a uma série de perigos, incluindo embarcar em transportes superlotados e inadequados (Clements, 2024). Dessa forma, na tentativa de mitigar as consequências dessa crise migratória, surge a necessidade de garantir assistência humanitária para esses refugiados, assim como para os chadianos locais, capacitando-os a atenderem suas próprias necessidades básicas, como alimentação e educação, de modo que possam depender cada vez menos de ajuda externa, isto é, promovendo a autonomia.

Diante do cenário de persistência da guerra e com o financiamento para resposta humanitária no nível mais baixo de todos os tempos, destaca-se uma perspectiva promissora, apresentada, em abril de 2024, pelo governo japonês. Este expressou apoio às intervenções do PMA diante da crise migratória no Chade, por meio de uma contribuição ao programa. Assim, o Japão colabora para que as atividades do PMA continuem provendo assistência alimentar e nutricional aos refugiados. Esse financiamento será direcionado à aquisição de determinados produtos alimentares localmente (WFP Chad, 2024). O objetivo de aumentar os rendimentos dos agricultores chadianos e o estímulo à economia local indica uma busca pelo PMA de tratar as causas estruturais dos impasses enfrentados pelo Chade. O programa adota uma estratégia de mitigação das consequências da crise migratória que trata as causas subjacentes ao problema. Então, para além do fornecimento de assistência imediata aos refugiados, o PMA promove a autossuficiência local, reduzindo, principalmente, a probabilidade dos refugiados se deslocarem perigosamente ao redor do globo em busca de melhores perspectivas de vida.

Considerações finais

O Sudão está passando por um dos períodos mais desafiadores da sua história. Essa situação impacta diretamente os seus vizinhos, principalmente o Chade, que agora enfrenta uma crise humanitária. Nesse contexto, as organizações internacionais desempenham um papel crucial.

Assim, torna-se evidente a necessidade de a sociedade internacional continuar a apoiar e financiar as operações humanitárias, muitas vezes organizadas e comandadas pelas organizações internacionais, para garantir o bem-estar dos refugiados e aliviar a pressão sobre os recursos locais. No entanto, nota-se que, absorvida por outros assuntos, a resposta internacional agora tem se manifestado lentamente. A falta de financiamento representa um desafio significativo para a assistência humanitária no Chade, pois limita a capacidade das organizações de fornecer auxílio humanitário adequado aos afetados pela crise migratória. Com o PMA tendo enfrentado uma significativa falta de financiamento, iniciativas como a contribuição do governo japonês são um passo positivo. No entanto, mais esforços são necessários para enfrentar essa crise em evolução e garantir a autossuficiência local.

Referências

Assal, Munzoul. War in Sudan 15 april 2023: background, analysis and scenarios. International IDEA. Estocolmo, 23 ago. 2023. Disponível em:  https://www.idea.int/sites/default/files/2023-09/war-in-sudan-15-april-2023-background-analysis-and-scenarios.pdf. Acesso em: 2 de abr. 2024.

Acted. Chad: providing emergency assistance to Sudanese refugees on the eastern border. s.d. Disponível em: https://www.acted.org/en/chad-providing-emergency-assistance-to-sudanese-refugees-on-the-eastern-border/.  Acesso em: 2 de abr. 2024.

Clements, Kelly. Privar a ONU de recursos causará danos irreversíveis. Poder 360, 13 de abr. 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/privar-a-onu-de-recursos-causara-danos-irreversiveis. Acesso em: 15 de abr. 2024.

Insecurity Insight. The Sudan Crisis, Conflict and Food Insecurity. Jul. 2023. Disponível em: https://insecurityinsight.org/country-pages/sudan. Acesso em: 2 de abr. 2024.

International IDEA. The War in Khartoum and its Impact on Darfur. International IDEA. Estocolmo, fev. 2024. Disponível em:  https://www.idea.int/sites/default/files/2023-09/war-in-sudan-15-april-2023-background-analysis-and-scenarios.pdf. Acesso em: 2 de abr. 2024.

Mugadam, Mugadam Mahamat. African migration to Chad: Diversity of ethnic groups as one of the motives for the choice of immigrants. Asia and Africa Today, n. 1, p. 71-76, fev. 2024. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Mougadam-Mougadam/publication/359040601_African_migration_to_Chad_Diversity_of_ethnic_groups_as_one_of_the_motives_for_the_choice_of_migrants/links/6223d9d53c53d31ba4aae8f3/African-migration-to-Chad-Diversity-of-ethnic-groups-as-one-of-the-motives-for-the-choice-of-migrants.pdf. Acesso em: 2 de abr. 2024.

OCHA. Chad: Humanitarian situation overview. nov. 2023. Disponível em: https://www.unocha.org/publications/report/chad/chad-humanitarian-situation-overview-november-2023. Acesso em: 2 de abr. 2024.

ONU. Darfur: duas décadas de sofrimento. Centro Regional de Informação para a Europa Ocidental. Disponível em: https://unric.org/pt/darfur-duas-decadas-de-sofrimento/. Acesso em 2 abr. 2024.

UN News. Funding shortfall puts WFP operations in Chad at risk. 23 de nov. 2023, Humanitarian Aid. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2023/11/1143837. Acesso em: 4 de abr. 2024.

UNHCR. Emergency situation in Chad: update on arrivals from Sudan. 16 de mar. 2024. Disponível em: https://reliefweb.int/report/chad/emergency-situation-chad-update-arrivals-sudan-16-march-2024. Acesso em: 2 de abr. 2024.

UNSC. Letter dated 7 February 2023 from the Panel of Experts on the Sudan addressed to the President of the Security Council. 7 fev. 2023. Disponível em: https://undocs.org/Home/Mobile?FinalSymbol=S%2F2023%2F93&Language=E&DeviceType=Desktop&LangRequested=False. Acesso em: 2 de abr. 2024.

WFP Chad. Emergency assistance in support of the government’s response. 4 de mar. 2024. Disponível em: https://reliefweb.int/report/chad/wfp-chad-emergency-assistance-support-governments-response-external-situation-report-14-4th-march-2024. Acesso em: 4 de abr. 2024.

Notas

[i]  As Forças de Apoio Rápido são consideradas uma progressão das milícias Janjaweed, que, ao defender os interesses do governo, desempenharam um papel significativo no conflito de Darfur (2003). Uma das razões para a relação entre as milícias Janjaweed e a estas forças é o papel de liderança de Hemedti nos dois grupos. As Forças de Apoio Rápido, juntamente com as Forças Armadas do Sudão, compunham a coalizão militar no governo de transição (International IDEA, 2024).

[ii] A Guerra em Darfur teve início em 2003, quando bases governamentais na região foram atacadas por membros de grupos étnicos locais que alegavam marginalização política por parte do governo. A resposta do exército foi caracterizada pela violência intensa, resultando em graves consequências para os civis e levando à acusação de crimes de guerra contra o presidente sudanês pelo Tribunal Penal Internacional (ONU, s.d).

Publicado em África, Chade, crise migratória, Sudão | Deixe um comentário

Eleições de 2024 no Senegal: um novo governo em meio à insatisfação popular e a ascensão da nova oposição política

Maria Silveira Bueno Ferreira de Sousa
Renan José de Almeida

Resumo

Após o adiamento das eleições presidenciais senegalesas em fevereiro de 2024, Bassirou Diomaye Faye (44) foi declarado presidente eleito nas eleições que ocorreram em 24 de março. À vista disso, o presente artigo propõe-se a expor os eventos que precederam as votações e os seus impactos na democracia do Senegal. Além disso, busca-se analisar as dificuldades que o presidente eleito enfrentará, sobretudo, em sua pretensão de realizar uma nova política em meio a insatisfação pública com o governo anterior de Macky Sall e em seu compromisso de posicionar o país como um aliado confiável para seus parceiros internacionais.

Diomaye é Sonko, Sonko é Diomaye”: a vitória de Bassirou Diomaye Faye nas eleições presidenciais senegalesas de 2024

Após os esforços do ex-presidente Macky Sall para adiar as eleições senegalesas terem levado a uma repreensão do Tribunal Constitucional e a protestos violentos no país, o governo anunciou, em 6 de março, que as eleições presidenciais estavam marcadas para o final do mês. Desse modo, as eleições ocorreram no domingo 24 de março, em que Bassirou Diomaye Faye (44) foi declarado vencedor com 54,28% do total de votos, enquanto seu principal adversário e ex-primeiro-ministro Amadou Ba, teve 25,79%, segundo o resultado oficial divulgado pela Comissão Nacional de Contagem de Votos na quarta-feira, 27 de março. O líder da oposição de Faye era o antigo primeiro-ministro Amadou Ba, nomeado por Sall como a escolha presidencial do partido no poder. Ele é visto como uma figura ortodoxa que ocupou diversos cargos de poder, por isso, uma vitória de Ba teria significado continuidade política com o governo anterior. Além disso, ele pertence à antiga coligação governante Benno Bokk Yakaar (Unidos na Esperança), cuja popularidade foi corroída por anos de retrocessos nos direitos humanos. 

A confirmação abriu caminho para sua posse como quinto presidente do país, realizada em  2 de abril. Até pouco antes das eleições, Faye ainda não era uma figura muito conhecida por fora de seu partido, principalmente porque, até dez dias antes das eleições, Faye ainda era prisioneiro na prisão de Cap Manuel, na periferia sul de Dakar. Em julho de 2023, o líder do Partido Patriotas pelo Trabalho, Ética e Fraternidade (PASTEF), Ousmane Sonko, foi acusado de insurreição e impedido de concorrer às eleições para suceder o presidente Sall e o partido, por sua vez, foi dissolvido. Como forma de desempenhar papéis de candidatos suplentes, Faye – que também havia sido detido – Cheikh Tidiane Dièye e Habib Sy, foram enviados por Sanko para apresentarem as suas candidaturas a fim de garantir que as ideias do partido seriam representadas. 

Embora Faye tenha sido preso acusado de desrespeito ao tribunal, difamação e atos suscetíveis de comprometer a paz pública, depois de publicar uma mensagem crítica ao sistema judicial, não foi condenado por qualquer crime e conseguiu candidatar-se às eleições. Faye se tornou a escolha popular por ser o substituto mais próximo de Sonko. Com intuito de tornar Faye popular entre a nação, popularizou-se um slogan que visava aproximar as duas figuras e a semelhança das origens dos dois homens: “Diomaye moy Sonko, Sonko moy Diomaye” (“Diomaye é Sonko, Sonko é Diomaye”, em wolof), cantado entre os membros do partido. Sublinha-se que embora Sonko manifeste-se como eloquente e ativo, Faye, por sua vez, fez da discrição e da calma sua marca registrada, de modo que a imagem dessas duas figuras seja moldada para exercer uma complementaridade entre si.

A crise democrática do Senegal: desafios políticos na pré-eleição do país

O Senegal é considerado um dos países mais estáveis da África Ocidental, com um sistema democrático consolidado em uma região com um alto número de golpes de Estado e severas crises políticas. Diferente do histórico eleitoral dos seus países vizinhos [i], suas transferências presidenciais sempre ocorreram de forma pacífica, sem fraudes eleitorais, e nenhuma ação golpista foi consolidada no decorrer de sua história. No entanto, após dois mandatos, Sall, atual ex-presidente do país, adiou as eleições presidenciais que aconteceriam no dia 25 de fevereiro. O anúncio foi feito por meio dos canais midiáticos estatais, onde Sall alegou que o Tribunal Constitucional cometeu erros na aprovação dos candidatos que disputariam a eleição e, como consequência, as votações não poderiam ocorrer na data proposta. Nesse sentido, essa ação colocou em risco a estabilidade política do Senegal e ameaçou a sua integridade eleitoral.

Dentre as figuras desqualificadas, está um opositor popular extremamente importante, Ousmane Sonko, que foi desclassificado por ter antecedentes criminais. Apesar de defender que o adiamento foi ocasionado devido à corrupção do tribunal com os candidatos das eleições, essa atitude foi entendida pela população senegalesa e pela oposição como uma manobra política. Por um lado, a oposição admitiu que o presidente e o seu partido não estavam seguros da popularidade do primeiro-ministro Andou Ba, candidato da coligação Benno Bokk Yakaar de Sall, e consideraram o adiamento como uma saída para esse empecilho. Já por outro, mesmo reiterando que não renovaria o seu mandato, a população do país não acatou de forma pacífica e agradável essa atitude, que considerou o adiamento como um método para perpetuar um “golpe de Estado constitucional“, que parte das próprias forças do governo, possibilitando que o presidente se mantivesse no cargo por mais um período de tempo.

Para consolidar o adiamento das votações, Sall convocou o eleitorado para uma votação no dia 5 de fevereiro, dois dias após o seu primeiro anúncio. Os legisladores votaram e, com 105 votos a favor e um contrário, decidiram adiar as eleições presidenciais até dezembro deste ano, dessa maneira, o projeto foi aprovado quase por unanimidade. No entanto, a votação teve êxito até certo ponto, pois um considerável número de deputados da oposição foi removido à força da Câmara, resultando no enfraquecimento das posições dos partidos contrários. Por parte da população, a combinação dessas atitudes intensificou ainda mais o receio em relação ao enfraquecimento do aparato democrático do país. Como forma de protesto, a violência eclodiu em Senegal e as forças de segurança enfrentaram centenas de manifestantes contrários ao adiamento. Em meio às reações, quatro pessoas morreram em Dakar, Saint-Louis e Ziguinchor, cidades senegalesas onde ocorreram fortes manifestações, o que intensificou um surto de violência em meio à crise eleitoral. 

Em reação à resolução proposta pela votação e a tensão generalizada decorrente dos últimos acontecimentos, o Conselho Constitucional do Senegal considerou as medidas em questão inconstitucionais e cancelou, no dia 15 de fevereiro, o decreto que propunha o adiamento das eleições para dezembro. Essa decisão, por parte da autoridade eleitoral máxima do país, pode ser considerada como uma manifestação e um apoio à democracia senegalesa. Nesse sentido, em meio a pressão popular e uma profunda reviravolta de decisões, uma nova data foi proposta e o governo anunciou que as eleições ocorreriam no dia 24 de março, a decisão foi consolidada após uma reunião do Conselho de Ministros. O anúncio foi bem recebido pela população do país, que estava desgastada pela prolongada incerteza que os últimos acontecimentos perpetuaram. 

Além disso, é importante destacar que o governo e as políticas de Sall ficaram conhecidos pela forte repressão da liberdade civil, que se deu, principalmente, devido a ascensão do líder da oposição, Ousmane Sonko, e os consequentes movimentos em seu apoio. Desde 2012, no mínimo 60 pessoas foram mortas em movimentos e centenas de manifestantes e ativistas foram presos e torturados pelas forças do Estado. Desse modo, a combinação dessa posição autoritária com os últimos desdobramentos enfraqueceu a imagem de Senegal como um país democrático e estável. Para reforçar essa afirmação, vale ressaltar que os níveis de satisfação com a democracia diminuíram significativamente durante o último mandato governamental.

No ano de 2013, dados do Afrobarômetro expostos pela BBC demonstraram que mais de dois terços dos senegaleses estavam satisfeitos com o aparato democrático do país. Em contrapartida, menos da metade da população sustentou a mesma opinião em 2022. Além disso, uma outra pesquisa mostrou que 79% dos cidadãos afirmaram que os seus presidentes deveriam ser limitados a um máximo de dois mandatos. Tendo em vista a posição repressora dos últimos mandatos, a tentativa de Sall em ampliar o seu governo e os acontecimentos decorrentes dessa ação, a análise desses dados revela uma crescente desilusão popular em relação à democracia do país, destacando essa questão como um dos principais desafios para o novo presidente.

Os reflexos dos últimos mandatos de Sall e a promessa de redirecionamento político de Faye

Após a eleição de um novo líder, o foco político retornou para os desafios que continuam a assolar o Senegal. Depois de dois mandatos como presidente, o governo de Sall deixou o país com uma série de obstáculos que estão relacionados ao fato de que as políticas econômicas e sociais executadas pela sua administração não conseguiram reduzir de forma significativa a desigualdade econômica, conter a corrupção e diminuir a repressão da liberdade da população. Dessa forma, o presidente eleito se propôs a afastar-se de políticas do governo anterior, como as de dar prioridade aos interesses e empresas estrangeiras em detrimento das entidades locais. Principalmente, ao levar em consideração que os opositores de Sall o culpam pelas elevadas taxas de desemprego juvenil e pela crise migratória [ii] relacionada, que atingiu níveis recordes nos últimos anos.

No cenário internacional, o presidente eleito declarou que, após sua vitória, o Senegal teria como um dos seus principais objetivos firmar o compromisso de ser um aliado confiável para seus parceiros internacionais e regionais, porém, sem perder o seu foco de priorizar o desenvolvimento econômico e social do país. À vista disso, a França, um de seus maiores parceiros políticos e econômicos, afirmou o seu desejo de intensificar a sua parceria com a nação senegalesa. Assim, tendo em vista a queda da sua influência em suas antigas colônias africanas nos últimos anos [iii], a nova eleição e a ascensão de novo governo do país podem ser consideradas como novas oportunidades para retomar e ampliar a influência francesa na região. 

Apesar da tentativa de aproximação, Faye detinha como uma das bases de sua campanha eleitoral, uma promessa para o novo governo de afastar as interferências francesas na região e, dessa forma, diminuir as influências coloniais enraizadas no aparato político e econômico do país. Para corroborar essa afirmação, o novo governo tem como foco deixar de usar Franco CFA da África Ocidental, que é compreendido como um legado colonial francês, ação que marca um afastamento da França no país. No que diz respeito aos países da região, o novo governo tem como meta estreitar os laços dos países vizinhos com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e assumir um papel de liderança na coordenação dessa cooperação. Países como Burkina Faso, Mali e Níger, que foram tomados por golpes militares, se afastaram da organização devido a conflitos de interesses em decorrência, principalmente, das sanções econômicasaplicadas pela comunidade, e do caráter antidemocrático de seus governos. 

Notas de fim

[i] A África Ocidental tem sido historicamente marcada por instabilidades políticas e golpes de Estado. Desde 1960, década que marcou a independência de vários países, diversos governos foram derrubados. Alguns exemplos incluem o golpe no Mali, em 2012, em Guiné em 2021, e mais recentemente, Burkina Faso, que sofreu uma nova tentativa de golpe em 2024. 

[ii] O Senegal é um país de emigração e de imigração, todavia, se destaca internacionalmente devido às emigrações clandestinas em barcos precários, buscando alcançar a Europa. O número de pessoas que tentaram deixar o Senegal em barcos de madeira em ruínas aumentou em 2023 e quase 1.000 morreram nos primeiros seis meses de 2023, de acordo com o órgão de vigilância da migração espanhol Walking Borders.

[iii] No decorrer dos últimos anos, houve um aumento da pressão e de movimentos por parte das antigas colônias francesas por uma maior independência e autonomia política e econômica. 

Publicado em África, África Ocidental, eleições | Deixe um comentário

Do caos à renúncia: a influência política de gangues armadas no afastamento do primeiro-ministro Ariel Henry no Haiti

Amanda Ribeiro Silva
André Luís Norvino da Cruz

Resumo

Após ataques em prisões na capital do Haiti, Porto Príncipe, e ameaças de gangues armadas do início de uma guerra civil, o primeiro-ministro, Ariel Henry, renunciou ao seu cargo em março, sinalizando um aprofundamento da crise que assola o país. A atuação destas gangues no Estado possui uma longa história que remonta à instabilidade política do país que é presente desde sua independência, trazendo notoriedade para as ações destes grupos perante a sociedade. O presente artigo busca analisar a atividade das gangues em meio ao cenário político haitiano e seus reflexos na renúncia de Henry, tendo em vista a intensificação do cenário de crise do país.

Renúncia de Ariel Henry em meio ao levante de gangues armadas

O primeiro-ministro e presidente interino da República do Haiti, Ariel Henry, anunciou a sua renúncia ao cargo no dia 11 de março em meio a novos episódios de violência que vêm perturbando a nação haitiana. A crise institucional remonta governos anteriores, porém, desde o assassinato do ex-presidente Jovenel Moise, em 2021, há uma crescente instabilidade política, em meio a violência de mais de 200 gangues armadas presentes no país. Dentre os alvos, a capital Porto Príncipe está entre as regiões mais dominadas do território, com cerca de 80% dominado por esses grupos armados, tornando a cidade o palco do conflito. A decisão de renunciar ocorreu após outros atores, como os Estados Unidos e a Comunidade do Caribe[ii], apoiarem a ação e incentivarem a possibilidade de um conselho presidencial de transição, que deve ocorrer com a participação de grupos políticos, sociedade civil, grupos religiosos e setor privado, além da comunidade internacional. 

Marcado por um novo levante de grupos armados, o governo de Henry chega no início de março de 2024 de forma instável, pedindo ajuda internacional para solucionar o conflito que assola o país. O presidente interino realizou recentemente uma viagem ao Quênia a fim de estruturar uma nova missão de paz que seria liderada pelo país africano, porém isso é falho já que o país suspendeu o envio de policiais para o Haiti. Entretanto, o fracasso das missões que se antecederam, como a MINUSTAH[i], abriram precedentes para críticas da população, além de gangues armadas argumentarem a possibilidade de uma guerra civil, que pressionaram para que Henry renunciasse ao governo. Desse modo, a tentativa de Henry fracassou e o sistema de governo do país caribenho entrou em colapso, a partir dos recentes ataques de gangues armadas no país. 

O apoio externo vindo de países como Brasil, Estados Unidos e França tem sido alvo de críticas da oposição ao governo de Ariel Henry, considerado como ilegítimo. Entre figuras notórias, está Jimmy “Barbecue” Cherizier, líder da gangue G9, que já vem realizando constantes ataques no país, argumentando ser contra o governo Henry. Desde a nomeação como primeiro-ministro, em 2021, o político haitiano vem sofrendo críticas à sua longevidade no poder, por ser inicialmente um governo provisório e que organizaria novas eleições. Todavia, permaneceu no cargo até as recentes ameaças contra sua integridade, realizadas por essas gangues, que não querem o diálogo, e sim a retirada de Henry.  

As gangues no cenário político haitiano

Haiti se libertou da escravatura e colonialismo francês no início do século XIX, se tornando a primeira república a ser liderada por negros no mundo e o primeiro Estado independente do Caribe. Porém a independência teve um alto custo, devido a extorsão francesa de que os antigos proprietários de escravos fossem indenizados, fazendo com que o país pagasse “indenizações” no valor de 150 milhões de francos à França. Em valores atuais a reparação seria proporcional a 560 milhões de dólares, porém se o dinheiro tivesse permanecido no Haiti seria proporcional a mais de 20 bilhões de dólares presentes  na economia haitiana desde do século XIX.

Diante disso, o país sofre com instabilidade crônica, devido a crises políticas e econômicas, e catástrofes naturais, principalmente o terremoto ocorrido em 2010 que deixou cerca de 300 mil pessoas mortas, contribuíram para danos estruturais e econômicos que hoje colocam o país como o mais pobre das Américas. Ademais, a vulnerabilidade política se intensificou ainda mais em 2021 com o terromoto ocorrido que resultou em inúmeras mortes e abalos estruturais e, sobretudo, com o assassinato de Jovenel Moïse, presidente eleito em 2016. Isso fez com que um governo interino fosse instalado e o primeiro-ministro, Ariel Henry, assumisse o poder, o que não conseguiu conter a instabilidade no país e devido às pressões internas de gangues, renunciou ao cargo em março deste ano. 

A formação das gangues haitianas está intimamente associadas com políticos, partidos políticos, empresários e as elites do país. Como já mencionado na seção anterior, se acredita que há cerca de 200 gangues armadas no Haiti e por volta de metade delas estão presentes na capital, Porto Príncipe. Há duas grandes gangues que são rivais há anos e se enfrentam pelo controle de bairros na capital, G9, liderada por Jimmy “Barbecue” Cherizier, e GPep, liderada por Gabriel Jean-Pierre, também conhecido como Ti Gabriel. Ambos já foram acusados de violência sexual e assassinato em massa de locais que estão sob sua autoridades, além de distritos que planejam assumir. Mas o descontentamento com o governo de Ariel Henry fez com que, em 2023, os dois grupos chegassem a um pacto para cooperação e destituição do primeiro-ministro, chamado “viv ansanm”, que seria “viver juntos” em crioulo haitiano.

Figura 1: Principais territórios de gangues em Porto Príncipe e arredores

Fonte: BBC News Brasil, 2022.

É possível traçar esse fenômeno das gangues armadas desde a ditadura dos governos de François Duvalier, conhecido como Papa Doc, que foi presidente de 1957 a 1971, e seu filho Jean-Claude Duvalier, Baby Doc, que presidiu o país de 1971 a 1986, resultando ao todo 29 anos de governo. Esses governos marcam um momento de corrupção em que grande parte das reservas financeiras do Haiti foi para suas contas bancárias particulares e investimentos imobiliários luxuosos. Além disso, esses recursos foram usados para estabelecer um grupo paramilitar, o Tontons Macoutes, para fins de reprimir a oposição ao governo dos Duvaliers, resultando na morte e tortura de milhares de pessoas, esse grupo criou um precedente para as gangues atuais. 

Nos dias de hoje essas gangues são diferentes, conseguindo um nível de sofisticação nos seus ataques, como os ataques em prisões em Porto Príncipe no início de março desse ano, em que conseguiram desafiar as forças policiais haitianas. Isso ocorre devido a um grande acúmulo independente de dinheiro, de forma criminosa, como extorsão, tráfico e sequestros, e realizando atividades ilegais para fins políticos. Assim, com esse crescimento e autonomia, e também, de maneira especial, após o assassinato do presidente Moïse que deixou um vácuo de poder no governo, as gangues principais, como G9 e GPep, estão a cada vez mais realizando exigências políticas, com o intuito de não apenas manterem sua relevâcia, mas sua existência.

O papel das gangues em meio à crise política e ao vácuo de poder

Como já abordado, a crise no Haiti possui origens profundas que datam anos de corrupção e um sistema político instável, em que o sofrimento da nação é marcado desde o momento em que o país era vítima da escravatura, extorsão e colonialismo francês, que foi se aprofundando com o passar de gerações após se tornar independente. No final da década de 1950, o Haiti ficou no controle dos Duvalier até 1986, que expropriaram recursos financeiros do país e contribuíram para a força militar que aterrorizou a população e que a brutalidade remonta os ataques das atuais gangues armadas. Mesmo quando houve a primeira eleição democrática do país em 1990, em que Jean-Bertrand Aristide foi eleito, ocorreu um golpe que o tirou do poder em 1991. Depois ele retornou ao poder mais duas vezes, em 1994 e em 2001, mas foi deposto por mais um golpe, em um contexto onde a pobreza do país era imensa.

O cenário de pobreza opressiva do Haiti seguiu sem nenhuma mitigação mesmo com novos governantes entrando e saindo do poder nos anos que seguiram, e que foi agravado ainda mais com o terremoto que atingiu o país em 2010. Com o assassinato de Jovenel Moïse a crise se agravou, além de criar um vácuo de poder. Nesse momento, Ariel Henry, então primeiro-ministro entra ao poder como presidente interino e enfrenta uma crise de legitimidade com certos grupos da sociedade civil que queriam que o poder fosse entregue a um governo de transição, mas a exigência foi rejeitada. Isso fez com que a violência das gangues haitianas aumentasse em busca de seus interesses políticos, refletindo na população de forma a intensificar o caos, o que contribui para que o Estado seja considerado o mais frágil do continente americano.

As gangues armadas do Haiti têm desempenhado um papel central na instabilidade política e social do país, exercendo controle significativo em vastas áreas, controlando-as por meio da violência e intimidação. Recentemente, a pressão sobre o primeiro-ministro Ariel Henry para que renunciasse ao cargo evidencia a influência desses grupos, que não apenas envolvem atividades criminosas, mas também buscam lugar na governança haitiana. A aliança entre as principais gangues, G9 e GPep, demonstra uma determinação conjunta em participar politicamente no país, resistindo a intervenções estrangeiras, percebidas como ameaça à sua autonomia e interesses. 

Diante de um novo vácuo de poder deixado a partir da renúncia de Henry, o país está tomado por gangues. O líder proeminente do G9, Jimmy Chérizier, fez declarações sobre a possibilidade de abandonar as armas em troca da participação nas negociações para estabelecer um novo governo. Desde a saída de Henry, foi estabelecido um Conselho Presidencial de Transição, no qual Chérizier defende a participação de seu grupo nas discussões. Controlando grande parte da capital, o líder da G9 enfatizou em seus últimos discursos a necessidade de soluções diante da escalada da violência no Haiti, ele sugere que o abandono das armas poderia ser uma possibilidade para conter as agitações que estão conturbando a população do país.

A evolução das gangues haitianas para uma força mais autônoma reflete mudanças significativas na dinâmica política e social do país, podendo influenciar e até mesmo determinar eventos políticos importantes, como foi a renúncia de Henry. Assim, as gangues têm se afirmado como atores poderosos que buscam não apenas o lucro objetivo por sequestros e outras atividades ilícitas, mas também uma participação ativa no processo político do Haiti. Mesmo com os esforços internacionais por meio da MINUSTAH, que buscavam a estabilidade no país, a saída da missão foi marcada por crimes, apontando os agravamentos contemporâneos, que demonstram um ambiente desafiador para lidar com a violência e caos, causado pela crescente autonomia das gangues e suas influências políticas e econômicas.

O fracasso da MINUSTAH em alcançar seus objetivos perpassa tanto a ineficácia política, quanto às consequências humanas devastadoras. Além dos conflitos violentos e da instabilidade prolongada, a presença da missão foi marcada por relatos de abusos e crimes cometidos por seus membros, incluindo casos de exploração sexual e abuso de poder, além da epidemia de cólera. Esses incidentes não só minaram a confiança na missão e nas Nações Unidas, mas também exacerbaram a tensão e o descontentamento entre a população haitiana, ampliando os desafios enfrentados no processo de construção de paz, em meio ao cenário atual. 

Notas de fim

[i] MINUSTAH é a sigla que se refere à Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, que teve liderança brasileira. Para compreender melhor as implicações da missão é recomendada a leitura do artigo “O Encerramento da MINUSTAH e o Balanço das Operações”.

[ii] Comunidade do Caribe, uma organização regional que promove a cooperação econômica e política entre os países do Caribe.

Publicado em América Latina, Caribe, Crise Humanitária, Haitianos | Deixe um comentário

Guerra civil no Iêmen: a persistência da crise humanitária e a escassez de ajuda internacional

Larissa Cristina Silva Ribeiro
Maria Eduarda Soares de Brito

Resumo

O Grupo Houthi chegou ao poder no Iêmen em 2015, dando início a uma Guerra Civil que se aproxima dos 10 anos de duração. Hoje, a Crise Humanitária que assola a população do país é considerada pela ONU como a pior crise humanitária do mundo. No presente artigo, procura-se compreender os motivos que levaram à criação do grupo rebelde e a atual situação do conflito, busca analisar a situação do povo iemenita e os fatores que impedem a entrada de ajuda humanitária no território.

O surgimento e a ação do grupo Houthi

O grupo iemenita xiita[i], Houthi, surgiu no Iêmen na década de 1990, como um grupo fundamentado por sua fé religiosa e que tinha como objetivo combater a corrupção no país se posicionando contra o então Presidente Ali Abdullah Saleh, que era visto por muitos como um ditador. O grupo recebe apoio do Irã desde 2009, e esse apoio chega ao grupo na forma de, principalmente, armamentos, mas também na política. Os iranianos se interessaram pelos Houthis, no início, devido a um inimigo em comum: a Coalizão Árabe[ii].

O apoio por parte do Irã se fundamenta em questões geopolíticas, visto que o território ocupado pelos Houthis ao norte do Iêmen oferece um lugar para amparar um posto avançado de inteligência e uma rede secreta de distribuição de armas para apoiar seus interesses no Oriente Médio. Tal presença permite ao Irã possuir opções estratégicas em seu embate contra Israel e poderia ser útil para enfrentar a Arábia Saudita, visto que o território ocupado faz fronteira com o mesmo. No que concerne a presença da Arábia Saudita e seus apoiadores no conflito, o principal objetivo do líder da Coalizão é se proteger dos avanços iranianos. A questão geopolítica entre o Estado iraniano e saudita se desencadeia desde a Revolução Iraniana de 1979, com a dualidade xiita e sunita.

As manifestações da Primavera Árabe[iii] deram força para o grupo em um momento no qual a repressão sofrida pela população iemenita era latente. A primeira manifestação importante dos Houthis foi no fim de 2014, contra o aumento excessivo dos preços da gasolina e o governo autoritário. No ano seguinte, o grupo tomou controle da capital do país, Sanaa, e forçou o então presidente, Abd Rabbu Mansour Hadi, a renunciar. Hadi foi presidente em exílio do Iêmen até 2022, mesmo quando já não tinha qualquer autoridade sobre 70% do território, que estava sob controle dos rebeldes. Em março de 2024, houveram indícios de uma negociação próspera para encerrar os ataques aos navios, juntamente com o fim da crise humanitária, que aconteceria por meio da normalização Irã-Saudita[iiii], mas a conversa não gerou frutos e foram pautadas pela violência.

Também conhecidos como Ansar Allah (apoiadores de Deus), o grupo controla a maior parte do território do Iêmen, incluindo a capital e áreas próximas à fronteira com a Arábia Saudita, ator este que possui uma coligação militar local e que os xiitas buscam combater com o apoio do Irã. Conseguinte a isso, os Houthis ao partilharem e defenderem os ideais iranianos contra os sauditas e israelenses estão sendo frequentemente noticiado pelos ataques direcionados aos navios comerciais e militares com ligações com Israel no Golfo do Aden, alegam que o principal objetivo desta ação é pressionar Tel Aviv para finalizar o conflito contra o Hamas.

Figura 1: Área controlada pelos Houthis e os ataques no Golfo do Áden

Fonte: BBC News, 2023.

A guerra civil iemenita e a crise humanitária

A guerra civil teve início oficial em 2014, com a falta de apoio dos militares do Iêmen no governo de Abdrabbuh Mansour Hadi e o enfraquecimento estatal, quando o grupo Houthi começou a tomar o controle de alguns territórios até atingir a capital, e, no ano que se sucedeu, forçar Hadi a fugir para outra nação. A tomada de poder gerou desconfiança na Arábia Saudita, visto o envolvimento direto do grupo com o Irã, resultando na ação da Coligação através de ataques aéreos com a finalidade de expulsar os Houthis do poder. A Coligação conseguiu, em 2015, expulsá-los do sul do Iêmen, mas o norte prosseguiu sob comando do grupo rebelde. O desencadear do combate se seguiu por disputas políticas e alianças formadas e quebradas, como a tentativa de união entre o ex-presidente Ali Abdullah Saleh e os Houthis para a formação de um conselho político, e, posteriormente, o rompimento de Saleh com o grupo e ataque de seus apoiadores aos membros do mesmo, o que resultou no homicídio do ex-presidente.

O que sucedeu foi uma sequência de ofensivas da Coligação Árabe contra os Houthis e, em 2018, após seis meses de embates violentos na tentativa àrabe de recapturar a cidade  de Hudaydah, ambos os lados concordaram em cessar fogo na região. Com a eclosão da Guerra na última década, no Iêmen, um Estado já fragilizado há décadas, agravou-se a Crise Humanitária, marcada pela fome e pela miséria, com milhões de habitantes – majoritariamente crianças – sendo forçados a se deslocar pelo território, sem qualquer certificação de segurança, uma vez que ação de ambos os lados do conflito causaram a morte de milhares. Em 2021, a ONU projetou que haveria quase 400 mil mortos no país, incluindo aqueles em combate e os que morreram por causas indiretas, como doenças, a falta de higiene, e a fome. O caso do Iêmen é parecido com a situação de outros países do Oriente Médio, onde a maior parte das casualidades tem relação à essas causas indiretas, e não no campo de batalha. 

Ademais, mesmo quando a ONU conseguiu negociar uma trégua nos combates, em 2022, as partes envolvidas (Houthi e Coligação Àrabe), continuaram a cometer graves violações contra os direitos humanos no Iêmen. As violações apresentadas envolvem ataques ilegais que mataram civis, restringiram a liberdade de circulação e houve um deslocamento interno da população de forma não arbitrária. Além destes fatos, os guardas sauditas que estavam na fronteira com o Iêmen cometeram assassinatos em massa de imigrantes etíopes, o que configura crime contra a humanidade, e faz com que o conflito deixe de ser interno. 

Com eventos isolados, houve o recrudescimento das relações em 2023, quando os Houthis atacaram alvos na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos. Em resposta, a Coligação realizou uma forte ofensiva, matando dezenas de civis. Outrossim, o conflito é marcado pela miséria e fome generalizada, há aumento dos preços dos alimentos, queda do salário dos civis e poucas oportunidades de trabalho que agravam a questão, como consequência, aproximadamente 17 milhõesde habitantes estão enfrentando o mais alto grau de insegurança alimentar. Desde o início dos bombardeios, de ambos os lados, é calculado que um número superior a 4 milhões de residentes se tornaram deslocados e 80% da população ainda carece de ajuda humanitária e proteção.

O envolvimento de atores externos e a dificuldade na resolução da crise humanitária

Hoje, após quase uma década de combate constante no país, o Iêmen é o país mais pobre do Oriente Médio e é reconhecido como a maior crise humanitária ao redor do mundo, de acordo com a Organização das Nações Unidas. A crise está não somente na permanência do conflito, mas também pela insegurança alimentar e pela impossibilidade de ajuda para a população. No início da guerra entre os Houthis e a Coalizão Árabe, o grupo rebelde procurou uma resolução pacífica para cessar os ataques, mas que nunca chegou a se concretizar, não passando da fase de diálogos. De um lado, o grupo xiita não quer ceder o poder conquistado com muita dificuldade ao longo dos últimos e, do outro, os sunitas do Golfo se recusam a permitir que percam mais influência no território. 

Tendo como principal apoiador o Irã, os Ansar Allah são parte fundamental do Eixo de Resistência contra a influência ocidental no Oriente Médio, cujas atividades são focadas em manter os Estados Unidos e sua influência fora da região, o que significa se posicionar, também, contra Israel, além da Arábia Saudita. A atuação dos iemenitas no Golfo do Áden é financiada pelo líder do Eixo, que em retorno impede a passagem de navios cargueiros que levam suprimentos ocidentais  para essas nações aliadas dos Estados Unidos. 

Outrossim, os Estados Unidos apoiam e financiam as ofensivas realizadas pela Arábia Saudita. Isto posto, em 2022 os representantes da Casa Branca afirmaram que bloquear o envio de ajuda significaria impedir que negociações diplomáticas ocorresse com sucesso, apesar de que, atualmente, nenhuma negociação sobre paz na guerra civil iemenita tem sido bem-sucedida. Embora a afirmação possuía uma perspectiva pacífica, no início de 2024 houve bombardeamentoliderado pelos Estados Unidos e Reino Unido em Sanaa e em Al Hodaydah onde haviam membros do Houthi, os alvos eram centros logísticos com depósitos de armas dos rebeldes. As atitudes ocidentais resultaram em reações locais, o Ministério das Relações Exteriores de Omã criticou o ataque ocidental e alegou preocupação com a escala de conflito na região, reiterando o apelo por uma paz justa e abrangente apoiada na prosperidade para ambos os atores envolvidos no conflito. 

Visando amenizar a crise de miséria local e tentado tornar digna a vida dos civis, a ONU, em 2023, inicia negociações com os líderes do Houthi juntamente com o Programa Alimentar Mundial (PAM), porém, o grupo não se mostrou solícito ao pedido de tornar as áreas mais atingidas pela fome seguras para a entrada do auxílio. Desse modo, a distribuição de alimentos foi interrompida e a crise foi agravada ainda mais, visto que os produtos seriam destinados a cerca de 10 milhões de habitantes. Desde as primeiras ofensivas da guerra civil, há quase uma década, mais de 150 mil habitantes faleceram, seja pelos ataques, pela falta de saneamento básico ou pela crise alimentícia. Portanto, ao analisarmos os resultados deste conflito, os atores que o executam são os menos atingidos, a população iemenita é a que precisa lidar com as consequências das ações do grupo Houthi e seus aliados, a Coligação Àrabe e as dificuldades em negociar em prol dos civis enfrentadas pela ONU. 

Notas de fim

[i] Xiitas são uma minoria do islamismo que consideram Ali, descendente de Maomé, é o sucessor legítmo do profeta, o que entra em choque com a crença Sunita, maioria dentro da religião.

[ii] Grupo de países majoritariamente sunitas liderados pela Arábia Saudita e que são os principais atores no conflito contra os Houthis.

[iii] A Primavera Árabe foi uma série de movimentos populares no Norte da África e no Oriente Médio no início da década de 2010 que buscaram liberdade frente a governos repressivos e direitos humanos. 

[iiii] A normalização das relações diplomáticas entre os dois países. 

Publicado em Crise Humanitária, Iemen, Oriente Médio | Deixe um comentário

Portugal se torna mais um pilar da extrema-direita europeia após crescimento do Chega nas eleições antecipadas

Joana de Castro Pinellia
Júlio Lima Pinto de Souza

Resumo

A consolidação do partido ultranacionalista Chega como a terceira maior força política de Portugal após as recentes eleições realizadas, com seu número de deputados no parlamento triplicando, saindo de 12 assentos para 48, apresentam mais um claro alerta sobre o desgaste político de partidos tradicionais e da consequente capitalização pela retórica da extrema-direita sobre um eleitorado desiludido em um cenário onde a disparidade econômica e a desigualdade social entre as classes são crescentes e onde os direitos trabalhistas sofrem constante retrocesso. Assim, este artigo busca repercutir a mais nova eleição lusitana, suas características e como elas se encaixam na atual conjuntura europeia.

As raízes e o prelúdio das eleições presidenciais antecipadas em Portugal

Em novembro de 2023, o primeiro-ministro de Portugal, António Costa, apresentou sua renúncia após ser nomeado em uma investigação sobre suspeita de corrupção ativa e passiva associada à exploração de lítio e de hidrogênio verde, além de lavagem de dinheiro e tráfico de influência. A renúncia ocorreu horas depois de cerca de 140 investigadores revistarem 17 propriedades residenciais e 25 outras instalações, como a residência oficial do primeiro-ministro e dois ministérios do governo. Além disso, autoridades prenderam o chefe de gabinete Vitor Escaria e indiciaram o ministro das Infraestruturas, João Galamba, como suspeito formal na investigação. Apesar de Costa ter negado qualquer irregularidade, o político apresentou sua demissão ao presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, alegando que não poderia mais continuar no cargo pois as funções de primeiro-ministro “não eram compatíveis com qualquer suspeita da minha integridade”. De acordo com a Procuradoria-Geral da República, o Supremo Tribunal de Justiça abriu uma investigação contra Costa.

A queda de Costa ocorreu poucos dias antes de ele completar oito anos no poder. Logo após a renúncia, o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa dissolveu o parlamento, onde o Partido Socialista (PS) detinha a maioria dos assentos, e convocou eleições antecipadas para o dia 10 de março de 2024. À vista disso, a Constituição portuguesa estabelece que é o chefe de Estado do país quem tem a prerrogativa de dissolver a Assembleia da República em casos graves e convocar eleições antecipadas no prazo de 60 dias após a emissão de um decreto presidencial.

Líder do PS, António Costa assumiu o cargo no dia 26 de novembro de 2015, em uma eleição marcada pela atuação da “geringonça”, uma coligação entre o PS, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP). A aliança, que teve início nas eleições legislativas do mesmo ano, foi formada com o intuito de derrubar o governo de centro-direita e impedir a posse de Pedro Passos Coelho, candidato do Partido Social Democrata (PSD), que venceu a apuração dos votos. Apesar da vitória de Passos Coelho, a direita era minoria no parlamento português, e assim, Costa assumiu o poder por deter a maioria na formação pós-eleitoral da Assembleia da República

O termo “geringonça” teve sua notoriedade depois de um discurso de Paulo Portas, presidente do Partido Popular (CDS), sobre a coalizão entre os três partidos. Portas teceu críticas sobre a aliança e afirmou que “não era um governo, mas uma geringonça”. A palavra, que possui um significado coloquial de o que é malfeito com uma estrutura frágil, passou a ser utilizado por comentaristas e em seguida, por integrantes da “geringonça”, por trazer um novo significado para denominar a força desse governo que foi inicialmente mostrado como fraco.

Nesse sentido, a coligação denominada “geringonça”, previamente mencionada, foi desacreditada por economistas no início de sua formação após Costa instituir uma mudança econômica que não satisfazia o mercado financeiro; porém, conseguiu trazer êxito depois de oferecer uma estabilidade, além de bons indicadores na economia e a promoção de políticas sociais. Com a mudança irreversível do cenário político, quatro anos depois, em outubro de 2019, António Costa foi reeleito quando o Partido Socialista conquistou a maioria absoluta no parlamento português. Entretanto, apesar do quadro político ter trazido uma situação de alívio social, foi em 2022 que Costa convocou eleições legislativas em uma tentativa de acabar com a dependência do PS com os outros grupos de esquerda. A situação se deu após a recusa dos socialistas em chegar a um acordo com o BE e o PCP sobre o novo orçamento, que possui suas origens relacionadas as medidas de austeridade impostas pela TROIKA europeia².

Apesar de colocarem um fim ao reinado de austeridade receitado pela UE e implementado em Portugal pela administração do PSD, e que governou de 2011 a 2015, o PS também entrou para as eleições antecipadas de 2023 com uma pesada bagagem de desgastes políticos e sociais ocorridos durante sua administração (2015-2023), como uma severa inflação na zona do Euro, baixos salários, crises no sistema de saúde, greves trabalhistas e, principalmente, um aumento do custo de vida nas cidades devido a suas políticas neoliberais de captação de investimento estrangeiro, o que tornou a capital portuguesa uma das cidades mais caras da Europa.

Dessa forma, com os dois blocos tradicionais desacreditados diante da população, especialmente o de centro-esquerda (PS) graças à cobertura midiática sensacionalista do escândalo de corrupção, no qual o próprio Ministério Público português admitiu cometer erros durante a investigação, mas também a sua clara inabilidade de confrontar as consequências das políticas neoliberais permitidas durante seu governo e das quais as memórias ainda reverberam no imaginário da população votante, o discurso de partidos extremistas se tornou mais palatável para parte do eleitorado lusitano. Assim, as pesquisas realizadas no período pré-eleitoral apontavam, corretamente, um crescimento da direita liberal, mas especialmente de suas vertentes extremistas, que em Portugal atualmente se manifestam através do partido libertário Iniciativa Liberal (IL), fundado em 2017, e do partido de direita radical Chega, fundado em 2019.

O último partido em questão é apologista do fascismo lusitano inaugurado pela ditadura de Antônio Salazar (origem do termo salazarismo), que vigorou de 1932 até 1968, mas tendo um fim somente em 1974 com a Revolução dos Cravos, a qual completa 50 anos em 25 de abril. Além do populismo de direita e do conservadorismo social, a retórica adotada pelo Chega também é focada na visão reacionária de pautas criminais, adotando discursos nacionalistas, xenofóbicos, antissemitas e antissistemas, e no ataque às minorias, especialmente direcionados à população negra portuguesa e às comunidades brasileiras e comunidades Roma, os quais o partido e seus simpatizantes culpam por todos os infortunios de Portugal. Ataques que são perpetuados também pelo próprio líder do partido, André Ventura, acompanhados de uma versão do infame lema “Deus, Pátria, Família” (e trabalho, na versão neosalazarista).

O resultado das eleições portuguesas e sua conexão com a nova onda da extrema-direita na Europa

Mesmo após uma disputa acirrada que resultou na vitória da coligação conservadora, a Aliança Democrática (AD) – bloco constituído pelo PSD, CDS e o Partido Popular Monárquico (PPM) durante essa eleição – que conseguiu 79 dos 230 assentos no parlamento, sobre o PS, que teve seu pior desempenho desde 2011 e assegurou 77 assentos, o inegável vencedor das eleições foi o Chega, que quadruplicou seu número de parlamentares, garantindo 48 assentos.

Esse resultado³ dificulta a situação da AD, e da política portuguesa como um todo, que provavelmente terá dificuldade em formar uma maioria no parlamento e estabelecer um governo estável já que seu líder, Luís Montenegro – do PSD e que agora se torna o possível primeiro-ministro – declarou que não irá negociar uma coligação governista com o Chega devido às posições extremistas adotadas por este partido, optando por governar com minoria no parlamento e possivelmente criando um “cordão sanitário” com outros partidos para evitar que a extrema-direita consiga operar com facilidade. Situação similar ao do campo oposto em que, mesmo que o PS forme uma coligação com os partidos mais à esquerda do espectro político, como o PCP, o BE ou o Pessoas-Animais-Natureza (PAN), os quais não obtiveram bons resultados nesta eleição, ainda assim teria dificuldades em garantir uma maioria para governar. 

Nesse sentido, a conjuntura lusitana atual ganhou uma nova figura, o brasileiro Marcus Vinicius Teixeira Soares dos Santos, deputado eleito no dia 10 de março pela região do Porto. O parlamentar é filiado ao partido de extrema-direita Chega e defende políticas de controle de imigração, além de apoiar o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) e ser um crítico do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em suas redes sociais, ele realiza ataques frequentes à “esquerda” e movimentos progressistas, incluindo os direitos da comunidade LGBTQIA+, chegando a fazer ataques desrespeitosos à identidade de gênero. 

Contudo, esse quadro é agradável aos nacionalistas e a burguesia portuguesa, que agora podem se comparar aos países centrais do capitalismo europeu já que, com o crescimento e consolidação da extrema-direita como uma força política, Portugal se une aos exemplos da Alemanha, França e Itália, onde partidos extremistas de direita como AfD (Alternativ für Deutschland), RN (Rassemblement National) e FdI (Fratteli d’ Italia), respectivamente, desfrutam de popularidade e normalização. Isso, por sua vez, colabora com a proliferação da nova onda conservadora nacionalistapela Europa, sendo observada para além dos países já citados, na Finlândia, Espanha, Países Baixos, Suécia, Hungria, Polônia, dentre outros e que ameaça conquistar ainda mais espaço nas próximas eleições para o Parlamento Europeu, onde a direita radical, composta pelos grupos Identidade e Democracia (ID) e Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), ocupa a terceira maior bancada.

Portanto, Portugal agora não difere de outros casos dentro da Europa, onde partidos que abertamente flertam com o fascismo ganham, eleição após eleição, mais proeminência e normalizam cada vez mais a retórica da extrema-direita na disputa política, econômica e social. Isso ocorre, em grande parte, devido a desigualdade social e disparidade econômica que, mesmo em um dos centros do capitalismo, vem crescendo com o constante desmonte do Estado de bem-estar social europeu desde o fim da Guerra Fria e acelerado pela Crise Financeira de 2008, acontecimentos históricos que, respectivamente, diminuíram as alternativas concretas de oposição ao modelo capitalista dentro da europa e internalizaram de vez a ideologia neoliberal de austeridade fiscal na política comum europeia.

Políticas que, muitas vezes, são promovidas por partidos que se consideram progressistas ou que, de forma enganosa, utilizam os termos “social-democrata” ou “socialista”, mas que de fato são conformistas com políticas neoliberalizantes em detrimento dos desejos das suas bases de apoio, resultando em um desgaste político e de imagem dos partidos tradicionais perante seus eleitores, que passam a enxergá-los como burocracias alheias às realidades locais e que não representam as vontades da população. Esse eleitorado pode então se tornar mais suscetível aos discursos chauvinistas⁴ oferecidos pela extrema-direita, pois estes apresentam respostas simples e individualistas para problemas complexos e sistemáticos, como bem exemplifica o caso do Chega em Portugal.

Notas de fim

¹ As medidas de austeridade impostas pela TROIKA Europeia no início da década de 2010 fazem parte de um resgate financeiro concedido a Portugal, Grécia e Irlanda, devido à crise da dívida soberana da zona do euro. As principais medidas incluem redução dos gastos públicos, aumento de impostos, privatizações e reformas estruturais.

² O trio formado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a União Europeia (UE) e o Banco Central Europeu (BCE) fornecem resgates financeiros e condições rigorosas aos países em crise em troca de assistência financeira. 

³ Trecho relevante de 1:13:25 a 1:37:58.

⁴ Patriotismo fanático, agressivo. Entusiasmo excessivo pelo o que é nacional, e menosprezo sistemático pelo o que é estrangeiro.

Publicado em eleições, Europa, Extrema-Direita, Portugal | Deixe um comentário

Reeleição de Putin afirma continuidade da aliança sino-russa

Gabriel Avritzer                                                                                                    

Resumo

A recente reeleição do presidente Vladimir Putin no primeiro semestre de 2024 sinaliza uma continuidade no programa de aliança internacional entre China e Rússia. Os dois países tentam criar alternativas econômicas e geopolíticas que desviem do modelo de desenvolvimento estadunidense. O objetivo deste artigo é justamente analisar a dinâmica da parceria sino-russa em sua história e nos dias atuais para compreender como a manutenção de Putin, por mais seis anos, no Kremlin pode ser chave para o êxito dessa aliança. 

Contexto

Pela quinta vez Vladimir Putin é eleito presidente da Rússia. Com uma maioria de 87,97% dos votos, o líder russo permanecerá no Kremlin por mais seis anos. Sua reeleição gerou uma grande preocupação em diversos chefes de Estado estrangeiros, sendo uma clara afirmação da continuidade de sua campanha militar na Ucrânia e do seu domínio político na Rússia. Contudo, para o líder chinês, a vitória de Putin foi de extrema importância para a perpetuação de sua longa parceria. O resultado das eleições na Rússia tem um impacto profundo nas relações entre o país e a China. Podendo significar uma continuidade de um programa previamente estabelecido por Putin e Xi Jinping. (CNN. Six more…..2024).

Desde a ascensão de Xi ao poder, no início de 2013, houve 42 reuniões entre ele e Putin, um número muito superior a qualquer outro encontro entre o presidente chinês e outro líder internacional (CFR. China…2024). Além disso, com a criação da iniciativa da Nova Rota da Seda e dos BRICS, China e Rússia oficialmente embarcaram em duas novas alianças formais. Apesar de ambas serem de caráter econômico, a parceria se estende ao âmbito bélico, vide o aumento nas exportações chinesas para a Rússia, após o início da Guerra Russo-Ucraniana (Atlantic Council. China’s…2024). Portanto, entende-se que a parceria entre Xi Jinping e Putin foi construída ao longo do século XXI, de maneira em que essa nova reeleição na Rússia marque apenas sua continuidade.

História da aliança sino-russa

As relações contínuas entre Rússia e China começaram desde o início do século XVII, sendo que a forma de interação entre esses dois países e a dinâmica de poder mudaram drasticamente ao longo do tempo. No início do império Qing (1664-1911) as relações eram igualitárias sem muitos conflitos, com objetivos comerciais. Porém, com a ascensão da Rússia no século XIX e o enfraquecimento chinês devido à colonização inglesa, a balança de poder se altera. O Império Russo torna-se dominante na região e, aproveitando de sua influência, começa a anexar partes significativas do território da China, esse processo de exploração e colonização é uma das principais raízes dos diversos conflitos territoriais entre os dois países (Radchenko, Sergei. 2023).

A grande guinada nas relações sino-russas acontece com suas respectivas revoluções, a Revolução Russa em 1917 e a chinesa em 1949. Com os bolcheviques no poder na Rússia e Mao Tsé-Tung na China, uma nova era de relações internacionais entre os dois países surge. Em 1949, após a revolução chinesa e criação da República Popular da China, Mao corta relações com diversos países do ocidente geopolítico [3] e se alinha aos países de ideologia socialista. Essa política fez com que Moscou e Pequim se unissem, assinando um tratado de aliança militar em fevereiro de 1950 (FMPRC. Conclusion….[s/d]).

As relações amigáveis entre a União Soviética e a China não duraram muito tempo, por terem sido feitas por motivos parcialmente ideológicos, qualquer discordância de política ou mudança de governança poderia acarretar consequências drásticas para essa recente parceria. Foi justamente o que aconteceu. A morte de Stalin em 1953, mudou de forma brusca a dinâmica da parceria sino-soviética. Nesse sentido, Mao, após a troca de liderança, tenta projetar a China como protagonista e galgar o poder e o espaço deixado pela morte do líder soviético. Esse afrontamento foi visto de forma negativa pelo recém-eleito Nikita Kruschev, prejudicando a já frágil aliança. As falhas nas relações entre China e Rússia durante o período soviético, estão relacionadas com a rigidez dessa parceria, uma vez que a república chinesa estava, cada vez mais, afirmando-se como potência global. Essa mudança gradual na balança de poder entre os dois países se provou insustentável para a manutenção de uma aliança internacional.

Em 1978, após a morte de Mao, Deng Xiaoping assume a presidência da China e, apesar de sua posição anti-soviética, mantém relações com a Rússia e se aproxima dos Estados Unidos. Da década de 1980 até o início do século XX, as relações sino-russas foram relativamente estáveis, de modo que a China assume um posicionamento de diversificação internacional, expandindo sua diplomacia para englobar os países ocidentais (Kissinger, Henry. 2011).

Durante o governo de Deng Xiaoping na China (1978-1992), houve a desintegração da União Soviética, em 1991. A dissolução da URSS em diversas repúblicas foi um evento de transformação da conjuntura mundial. Dessa forma, entende-se que a aliança sino-soviética também sofreu suas mudanças, primeiramente, a partir dessa data, passa-se a ser referida como sino-russa. Apesar de ser uma mudança normativa, na superfície, isso altera completamente a dinâmica da parceria, uma vez que quebra os laços ideológicos existentes entre os dois países. O fim do período soviético marca uma nova era para as relações entre a China e a Rússia.

Putin e a mudança nas relações da Rússia com o ocidente e a China

Em 1999, Vladimir Putin assume a presidência da Rússia e, desde então, vê-se mudanças estruturais na política externa russa. O novo líder do Kremlin aparece com estratégias internacionais muito diferentes das de seu antecessor, Boris Yeltsin. Enquanto Yeltsin acreditava na construção de um país baseado na aproximação ao modelo econômico estadunidense, Putin assume uma postura oposta, desafiando o ocidente e seu principal hegêmona, os Estados Unidos (Crabtree, Lauren. 2023). Um exemplo claro disso seria a diversificação econômica do país euroasiático durante a gestão de Vladimir Putin, negociando com países como o Irã, a Líbia, a Índia e a China. Basicamente, o presidente russo mostra que os EUA não são chave para o crescimento econômico da Rússia, muito pelo contrário. Putin está tentando criar alternativas viáveis de desenvolvimento que não passem pelo polo estadunidense.

A posição desafiadora de Vladimir Putin permeia todo o século XXI, tendo como um de seus apogeus o discurso feito em Munique no ano de 2007. Nessa fala, o presidente discorre sobre a OTAN e a sinaliza como ameaça: “Eu acho que é óbvio que a expansão da OTAN não está relacionada com a modernização da aliança ou com segurança europeia. Muito pelo contrário, representa uma provocação séria que reduz o nível de confiança mútua.” (Kremlin, Speech…2007). A fala de Putin mostra claramente seu descontentamento com a conjuntura mundial, mais especificamente com a expansão da OTAN.

O outro apogeu da política externa de Putin é visto em 2014 com a anexação da Crimeia. Como resposta à Revolução da Dignidade, um movimento popular Ucraniano que depôs o presidente eleito Viktor Yanukovych [1], a Rússia invade militarmente a península da Crimeia e após assegurá-la conduz um referendo que, segundo as autoridades russas, tem como resultado a proposta de junção do território à Rússia. Oito anos após esse episódio, tropas russas invadem a Ucrânia e começam uma guerra sem previsões de qualquer cessar fogo ou trégua.

A guerra russo-ucraniana representa uma virada importantíssima nas relações da Rússia com o mundo (Radchenko, Sergei. 2023). Após a invasão em fevereiro de 2022, o ocidente se mobilizou para, não somente ajudar os ucranianos, como também para punir a Rússia. O país foi expulso do Swift[2], diversas nações cancelaram e suspenderam o tráfego marítimo, aéreo e terrestres com a Rússia e, além disso, inúmeras sanções foram impostas pela União Europeia e pelos Estados Unidos. Apesar dessa avalanche de condenações no cenário internacional, suas consequências foram quase imperceptíveis. o PIB da Rússia cresceu 3,6% em 2023 (FOLHA. O produto…2023), suas exportações não sofreram grandes baixas, mesmo tendo caído em dois terços para países europeus, essa queda foi compensada com o aumento de exportações para a Índia, China e Turquia (SPUTNIK. Apesar…2024).

Aliança atual entre China e Rússia

No contexto de uma deterioração drástica das relações entre a Rússia e o Ocidente e na acentuação da rivalidade sino-americana, a China e a Rússia emergem como parceiros ideais. Os dois países vistos como párias da ordem mundial vigente, em busca de uma bipolarização mundial ou até multipolarização, visam criar alternativas econômicas, sociais e geopolíticas à ocidentalização. Nesse sentido, surgem diversos mecanismos chineses e russos para contrapor a instituições estadunidenses e europeias, como o CIPS, a Nova Rota da Seda, os BRICS e a substituição do dólar como moeda de troca pelo yuan. Atualmente, 16% de todas as exportações para a Rússia são pagas em moeda chinesa, em contraste, antes da guerra esse número era menos de 1%, além disso, as trocas entre os dois países atingiram o valor recorde de 185 bilhões de dólares no ano de 2023 (FINANCIAL TIMES, Rússia…2023).

A expansão dos BRICS é outro fator a se considerar nessa tentativa de protagonismo do Sul Global. A parceria econômica, criada originalmente em 2009, cria uma plataforma alternativa de negociações comerciais e relações internacionais para os países fora do ocidente geopolítico. Começando com apenas quatro integrantes (Brasil, Índia, China e Rússia), a segunda expansão do bloco, tendo a primeira somente englobado a África do Sul, representa uma necessidade do Sul Global de utilizar rotas alternativas para seu desenvolvimento (BRASIL DE FATO, a expansão…2024).

Considerações Finais

A reeleição de Putin não foi uma surpresa para o cenário internacional, sendo por causa de sua popularidade nacional ou pelo caráter questionável das eleições russas, o resultado já era esperado. Contudo, seu simbolismo expressa um significado extremamente importante para a conjuntura global. Vladimir Putin assumir por mais seis anos o comando da Rússia é uma reafirmação da continuidade de sua política externa antiocidente e da aproximação com os países que se posicionam no sentido anti-hegemônico.

Nesse sentido, entende-se que diversos cenários são possíveis tendo em conta a permanência do líder russo no poder. A aliança sino-russo não é uma possibilidade, é uma realidade, dentro dela possíveis desdobramentos podem ocorrer. A mudança na liderança chinesa é extremamente improvável, Xi Jinping em 2023 foi eleito pela terceira vez, demonstrando sua influência e dominância sobre o Partido Comunista Chinês (CNN. Xi Jinping…2023). Sob esse prisma, resta uma variável extremamente importante, as eleições norte-americanas.

No ano de 2024, em novembro, ocorrerão as eleições estadunidenses, dentre suas inúmeras repercussões, a mudança da dinâmica sino-russa pode ser uma delas. No caso de uma derrota dos republicanos, o que significaria mais quatro anos de Biden, a conjuntura, a meu ver, tenderia a manter-se parecida com o que temos hoje. Contudo, uma eventual vitória de Donald Trump suspenderia uma nuvem de incertezas no cenário internacional. O ex-presidente dos Estados Unidos, apesar de suas posições ultranacionalistas, possuía uma relação próxima a Vladimir Putin. Isso significa que sua possível reeleição poderia modificar as dinâmicas entre os EUA e a Rússia e, por conseguinte, alterar de algum modo a dinâmica da aliança entre a Rússia e a China.

Portanto, vê-se que a dinâmica internacional está mudando. A aliança sino-russa, apesar de mais consolidada que a da era soviética, ainda possui muitos pontos voláteis. A única certeza que podemos ter ao olharmos para o cenário global é que a unipolaridade estadunidense está desaparecendo, se esse fenômeno porá um fim na hegemonia americana do último século e nos colocará rumo a uma multipolaridade, resta-nos especular.

Referências

CNN. [s.d.]. “Putin wins landslide victory in Russian election, onlookers express concerns about China and North Korea ties”. Disponível em: https://edition.cnn.com/2024/03/17/asia/russian-election-putin-china-north-korea-intl-hnk/index.html.

EXAME. [s.d.]. “Putin teve 87,97% dos votos, apontam dados preliminares da Comissão Eleitoral da Rússia”. Disponível em: https://exame.com/mundo/putin-teve-8797-dos-votos-apontam-dados-preliminares-da-comissao-eleitoral-da-russia/.

ICDS. [s.d.]. “What are the Legacies of Sino-Russian Relations?”. Disponível em: https://icds.ee/en/what-are-the-legacies-of-sino-russian-relations/.

Encyclopædia Britannica. [s.d.]. “Qing dynasty”. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Qing-dynasty.

Ministry of Foreign Affairs of the People’s Republic of China. [s.d.]. “Vladimir Putin Sends Messages of Condolences to President of the Russian Federation and President of the Republic of Uzbekistan Over Plane Crash in Russia”. Disponível em: https://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/ziliao_665539/3602_665543/3604_665547/200011/t20001117_697823.html.

KISSINGER, Henry. 2011. Sobre a China. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Objetiva.

Wilson Center. [s.d.]. “National Security and Foreign Policy Under Putin”. Disponível em: https://www.wilsoncenter.org/publication/national-security-and-foreign-policy-under-putin.

The Kremlin. [s.d.]. “Meeting with representatives of Russian and foreign business circles”. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034.

Lawfare. [s.d.]. “The World Reacts to Russia’s Invasion of Ukraine”. Disponível em: https://www.lawfaremedia.org/article/world-reacts-russias-invasion-ukraine.

Sputnik News. [s.d.]. “Apesar das sanções, exportações russas de petróleo e derivados atingem novos mercados”. Disponível em: https://sputniknewsbr.com.br/20240228/apesar-das-sancoes-exportacoes-russas-de-petroleo-e-derivados-atingem-novos-mercados-33306613.html#:~:text=Em%202023%2C%20a%20Rússia%20aumentou,a%2040%25%2C%20e%20em%202023.

Financial Times. [s.d.]. “Russia’s reliance on Chinese markets grows as EU gas demand falls”. Disponível em: https://www.ft.com/content/65681143-c6af-4b64-827d-a7ca6171937a.

RTP Notícias. [s.d.]. “Revolução da Dignidade: Euromaidan agudizou relações com a Rússia”. Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/revolucao-da-dignidade-euromaidan-agudizou-relacoes-com-a-russia_n1531342.

CONSELHO DE RELAÇÕES EXTERIORES (CFR). “China-Russia Relationship: Xi and Putin on Taiwan and Ukraine”. Disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/china-russia-relationship-xi-putin-taiwan-ukraine. Acesso em: [data de acesso].

ATLANTIC COUNCIL. “China’s Support for Russia Has Been Hindering Ukraine’s Counteroffensive”. Disponível em: https://www.atlanticcouncil.org/blogs/new-atlanticist/chinas-support-for-russia-has-been-hindering-ukraines-counteroffensive/. Acesso em: [data de acesso].

Notas

[i] A expressão ‘ocidente geopolítico’ é utilizada para definir os países do centro do capitalismo mundial, muitas vezes definidos como Norte Global. Dessa forma, inclui países notoriamente orientais, como o Japão.

[ii]: Viktor Yanukovich foi eleito em 2014 para o cargo de presidente da Ucrânia, sua posição era antiocidental e pró Rússia.. Após manifestações populares violentas, Yanukovich é deposto, instaurando um presidente interino em seu lugar. Esse episódio finaliza com seu exílio na Rússia e a eleição de Petro Poroshenko.

[iii]: O Swift (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) é um sistema mundial de transações bancárias. Funciona como um facilitador de transferências internacionais entre bancos de diferentes países.

Publicado em China, eleições, Rússia | Deixe um comentário

Tensões no Oriente Médio: a ascensão do Movimento Houthis e sua participação nos conflitos regionais da atualidade

Vívian Cristina Trindade Fonseca

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar um panorama sobre o Movimento Houthis, composto por muçulmanos zaydis do Iémen. Será destacado aqui a sua participação nas dinâmicas geopolíticas regionais, especialmente no contexto do conflito entre Hamas e Israel e suas ramificações na região do Mar Vermelho, que resultaram em um cenário de insegurança regional e comprometimento do comércio internacional. Por fim, destaca-se também a aliança dos Houthis ao Irã na formação do “Eixo de Resistência”, apontando as convergências de interesses entre eles e a luta contra a influência dos EUA e o protagonismo de Israel e da Arábia Saudita no Oriente Médio.

A comunidade Zaydi e a ascensão dos Houthis

O movimento dos Houthis, formado por radicais armados iemenitas, é parte integrante do movimento político-religioso denominado “Ansar Allah” (em português “Defensores de Deus”). Originado na década de 1990 em uma tribo localizada no norte do Iémen, próxima à fronteira com a Arábia Saudita, o movimento é composto, majoritariamente, por muçulmanos zaydis, um subgrupo do Islã xiita(i) que se opõe diretamente às influências estrangeiras – especialmente à influência saudita – no território iemenita. O nome “Houthis” faz referência ao próprio fundador do movimento, Hussein Badreddin al-Houthi (1956-2004), um líder religioso, militar e ex-político iemenita que desempenhou um papel fundamental na insurgência dos Houthis como força opositora contra o governo de Ali Abdullah Saleh. (Britannica, 2024)

Os muçulmanos zaydis, que representam quase um terço da população do Iémen, estão estabelecidos no norte do país desde o ano de 893 d.C. Historicamente, eles desfrutavam de uma relevante influência política na região, devido ao seu prestígio e prosperidade local. No entanto, com a criação da República Árabe do Iémen, também conhecida como “Iémen do Norte”, no ano de 1962, a comunidade enfrentou um período de intensa repressão. Nesse, o Imã, líder político e espiritual dos zaydis, foi deposto e exilado do país. A constante perseguição por parte das autoridades resultou na marginalização crescente deste grupo em todas as esferas da sociedade, tornando-os um elemento central na resistência ao governo iemenita. (Britannica, 2024)

Com a unificação do Iémen em 1990, surgiu o partido político Al-Haqq (1993-97), liderado por Hussein al-Houthi, cujo principal objetivo era promover a expansão das crenças e preceitos do xiismo zaidita e conter a influência das tradições sauditas no país. O líder al-Houthi também fundou o grupo “Jovens Crentes”, uma rede de jovens zaydis que propunha o investimento em educação religiosa, assistência social e a construção de um senso de comunidade. Notavelmente, a oposição concentrou-se no então presidente Ali Abdullah Saleh que foi fortemente criticado por suas políticas governamentais e por sua aliança com a Arábia Saudita e os Estados Unidos após a invasão americana ao Iraque em 2003. Esse alinhamento foi considerado ultrajante pelos membros mais radicais do movimento, que adotaram um discurso incendiário, expresso no jargão: “Deus é grande. Morte aos Estados Unidos. Morte a Israel. Maldição aos judeus e vitória para o Islã”. Reafirmando suas reivindicações de cunho separatista através de um discurso antissemita e da defesa de que o Iémen deveria ser governado por uma liderança não somente islâmica, mas também xiita (Britannica, 2024, DW News, 2024).

A partir do início do século XXI, a repressão aos Houthis por parte do governo de Saleh levou a militarização do grupo, que se radicalizou ainda mais após o assassinato de Hussein al-Houthi, em 2004.Até esse período, todos os recursos militares do grupo eram advindos do mercado ilegal e de roubos de armamentos das forças armadas iemenitas por ex-militares. Posteriormente, as manifestações da Primavera Árabe(ii) contribuíram para a queda de Saleh em 2011, que tinha pouco apoio popular entre os zaydis e alguns grupos de origem sunita. Seu sucessor, Abd Rabbuh Mansur Hadi, também foi alvo de duras críticas por parte do movimento, principalmente pelo apoio dado ao Partido Islah, principal oponente político e religioso dos Houthis, e a adoção de políticas econômicas no setor petrolífero que, em conjunto, foram responsáveis por uma escalada de conflito que eclodiu na Guerra Civil do Iémen em 2014 e que perdura até os dias de hoje. (DW News, 2024)

Eixo de Resistência: relações entre os Houthis e o Irã

Com o desenrolar da Guerra Civil, os ataques Houthis foram se sofisticando, indicando um possível financiamento externo. Nesse sentido, a “Força Quds”(iii)- grupo clandestino das forças iranianas – foi diretamente vinculada ao Houthis, confirmando a ligação entre o movimento e o Irã. Esse alinhamento está associado ao “Eixo de Resistência”(iv), uma aliança regional liderada pelo Irã e caracterizada pelo fundamentalismo islâmico, antiamericanismo e anti-israelismo, com a defesa do Estado Palestino. Esse discurso, muitas vezes radicalizado, conta com o apoio de grupos locais como o Hamas, na Faixa de Gaza e do Hezbollah no Líbano. A respeito disso, a diretora do Middle East Institute, Lina Khatib afirma: “O Irã conseguiu ter aliados e representantes no Líbano, nos territórios palestinos, no Iraque, na Síria e no Iêmen. Todos eles são usados ​​pelo Irã para promover seus objetivos políticos” (Britannica, 2024).

Para a nação iraniana, os Houthis fazem parte de sua estratégia geopolítica, ameaçando as zonas de influência sauditas na região, dada a localização estratégica do Iémen no Mar Vermelho, que é muito importante para os fluxos de comércio em todo Oriente Médio. O esforço em conquistar uma aliança ampla com o grupo iemenita se intensificou após a tomada da capital Sana’a pelos Houthis em 2014 e a intervenção da Arábia Saudita na Guerra Civil em 2015, revelando ainda mais a rivalidade entre os dois países. Por conseguinte, o grupo iemenita recebeu apoio não só militar, mas também diplomático e humanitário, o que ajudou o grupo a se fortalecer e a se projetar no cenário regional como força opositora (Zimmerman, 2022).

A escalada do conflito entre Hamas e Israel em outubro de 2023 estreitou as relações entre os membros do Eixo de Resistência contra o Estado israelense e lideranças ocidentais influentes no Oriente Médio. Essa maior aproximação, por sua vez, amplia o compartilhamento de recursos, militares e políticos, que resulta em um conjunto de forças que podem tornar a balança de poder favorável a esses grupos. Entretanto, apesar de se beneficiar dessas relações, o grupo iemenita não depende exclusivamente do Eixo ou do Irã para atuar na sua região. Ao contrário, a capacidade dos Houthis de se projetar para além de suas fronteiras revela certa independência do movimento em relação ao apoio externo, portanto, seu foco está direcionado a articulações políticas e diplomáticas para garantir sua narrativa na luta contra influências externas, especialmente dos EUA, Israel e Arábia Saudita. (Zimmerman, 2022)

Tensões no Mar Vermelho: Os Desdobramentos do Conflito entre Hamas e Israel

Reforçando seu posicionamento pró-Palestina, os Houthis se colocaram ao lado do grupo fundamentalista islâmico Hamas no conflito contra Israel intensificado no dia 7 de outubro de 2023 após um ataque do grupo palestino ao território israelense. O porta voz militar Houthis, Yahya Saree, culpa o Estado israelense não só pela guerra atual, mas por toda instabilidade vigente no Oriente Médio, afirmando que o ““círculo de conflito” na região estava se expandindo pelos seus “crimes contínuos”” (CNN Brasil, 2023). Posto isso, o grupo iemenita assumiu a autoria dos ataques de drones e mísseis no território de Israel no dia 31 de outubro de 2023, entrando efetivamente no conflito.

Desde então, com a escalada do conflito em Gaza, os Houthis viram uma oportunidade de atacar seus inimigos regionais em uma nova frente, contando com o apoio direto ou indireto – em termos políticos e ideológicos – de seus companheiros do Eixo de Resistência. Em dezembro de 2023, o grupo iemenita lançou mísseis e drones contra embarcações pertencentes a Israel no Mar Vermelho. Apesar de não terem apresentado uma ameaça direta ao território e à integridade israelense – uma vez que esses foram capazes de interceptar os ataques -, a mensagem política de sua ação é clara e expressa o descontentamento dos Houthis com a atuação de Israel na Palestina (BBC, 2024).

Posto isso, o Mar Vermelho se tornou um local de insegurança, principalmente para grandes empresas de transporte navais que suspenderam suas atividades temendo uma nova investida dos Houthis. Os alvos da milícia se voltaram para todas as embarcações que supostamente estariam saindo ou entrando no território de Israel, mas, ainda buscam proteger os navios com destino a Faixa de Gaza e que dispunham de ajuda humanitária à população palestina. Os EUA e outras potências ocidentais, após um período de ameaças, se uniram em um bombardeio contra os Houthis como uma resposta à ofensiva na região (DW News, 2023). Para os Houthis, a manutenção da ofensiva no Mar Vermelho é uma forma de reforçar seu apoio ao povo palestino e de reafirmar sua posição contra os Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita. O Irã negou envolvimento direto nos ataques dos Houthis, mas alguns especialistas sugerem que essas ações estão alinhadas aos interesses iranianos, ao passo que desafiam as forças americanas e pressionam Israel, que é um dos principais opositores do Irã na disputa por protagonismo no Oriente Médio, juntamente com a Arábia Saudita. (BBC, 2024)

Até abril de 2024, as tensões na região persistem, com a União Europeia reportando 11 ataques dos Houthis no Mar Vermelho e o grupo intensificando sua fiscalização e a obstrução de embarcações (Euronews, 2024). Esses conflitos têm implicações globais, segundo a ONU, afetando o transporte de cargas, aumentando custos e emissões de gases de efeito estufa. O Canal de Suez, por onde passa mais de 15% do comércio internacional, está ao norte do Mar Vermelho (ONU News, 2024). Como dito anteriormente, empresas suspenderam viagens na região, optando por rotas mais longas, aumentando custos de seguro, especialmente para empresas israelenses. Isso afeta a oferta e demanda por rotas alternativas, com preocupações no setor energético devido à localização geopolítica do conflito. Forças navais americanas e europeias buscam garantir segurança na hidrovia e evitar bloqueios completos. A ONU e a União Europeia lideram a pressão por um cessar-fogo imediato, destacando as implicações para o comércio internacional (DW News, 2023). 

Considerações Finais

Ao longo das últimas três décadas, o movimento Houthi emergiu como uma força significativa na política iemenita, baseada nos preceitos do Islã xiita, na oposição ao governo central e resistência contra influências estrangeiras, especialmente da Arábia Saudita e dos Estados Unidos. Sua aliança com outra potência do Oriente Médio, o Irã, reflete uma natureza complexa das relações de poder na região, que não se limitam às fronteiras nacionais, mas escancaram rivalidades regionais e interesses geopolíticos mais amplos e que muitas vezes resultam em conflitos, como o que ocorre na Faixa de Gaza.

As tensões no Mar Vermelho, é, de certa forma, uma ilustração da gravidade desses conflitos no que diz respeito ao comércio internacional e a segurança da região, afetando diretamente o transporte marítimo e as cadeias de abastecimento globais, causando maior instabilidade e incerteza para todo o Oriente Médio. É importante refletir sobre as profundas raízes históricas e a complexidade das razões que levaram os Houthis a afirmarem uma postura nacionalista radical, de distanciamento das influências sauditas e israelenses. Por fim, é possível perceber a urgência de uma intervenção efetiva por parte da comunidade internacional a fim de alcançar o fim dos conflitos no Mar Vermelho e promover a estabilidade e a paz na região, visando, principalmente, uma melhor qualidade de vida para toda a população que, de alguma forma, está envolvida nessas disputas.

Referências

BBC NEWS. Como os houthis apoiados pelo Irã atraem os EUA para guerra que não pode ser vencida. BBC News, 27 janeiro 2024. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cql9q0397nko&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

BBC NEWS. O longo desvio de rota de navios cargueiros para escapar de ataques no Mar Vermelho. BBC News, 28 janeiro 2024. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgrj44dr22xo&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

BRITANNICA. Houthi movement Yemeni militant movement. Britannica. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/Houthi-movement#ref1300933>. Acesso em: 8 abr. 2024.

BRITANNICA. Quds Force Iranian organization. Britannica. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/Quds-Force>. Acesso em: 8 abr. 2024.

BRITANNICA. Shi’i. History e Beliefs. Britannica. Disponível em:  https://www.britannica.com/topic/Shii Acesso em: 23 abr. 2024.

CNN BRASIL. Quem são os Houthis do Iêmen e por que eles atacaram Israel?. CNN Brasil, 1 novembro 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/quem-sao-os-houthis-do-iemen-e-por-que-eles-atacaram-israel/. Acesso em: 8 abr. 2024.

DW NEWS. Ataques no Mar Vermelho: Quem são os houthis?. DW News, 20 dezembro 2023. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/ataques-no-mar-vermelho-quem-s%C3%A3o-os-houthis/a-67780970&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

DW NEWS. Entenda por que a milícia houthi ataca navios no Mar Vermelho. DW News, 17 dezembro 2023. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/entenda-por-que-mil%C3%ADcia-houthi-ataca-navios-no-mar-vermelho/a-67750404&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

DW NEWS. Quem são os houthis do Iêmen. DW News, 12 Janeiro 2024. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/quem-s%C3%A3o-os-houthis-do-i%C3%AAmen-que-atacam-navios-no-mar-vermelho/a-67965283&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

EURO NEWS. Missão da União Europeia já repeliu 11 ataques dos Houthis no Mar Vermelho. Euro News, 8 abril 2024. Disponível em: <https://pt.euronews.com/my-europe/2024/04/08/missao-da-uniao-europeia-ja-repeliu-11-ataques-dos-houthis-no-mar-vermelho&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

ONU News. Ações militares no Mar Vermelho afetam transporte de cargas, custos e emissões globais. Nações Unidas, 25 Janeiro 2024. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2024/01/1826802&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

ZIMMERMAN, Katherine. Yemen’s Houthis and the Expansion of Iran’s Axis of Resistance. American Enterprise Institute, 2022. Disponível em: <https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/89184882/Yemen_s_Houthis_and_the_expansion_of_Iran_s_Axis_of_Resistance-libre.pdf?1659382915=&response-content-disposition=inline%3B+filename%3DYemen_s_Houthis_and_the_expansion_of_Ira.pdf&gt;. Acesso em: 8 abr. 2024.

Notas

[i] Islã xiita compreendido como o menor dos dois ramos principais do islamismo que se distingue da maioria sunita (Britannica, 2024)  Para mais informações consultar: https://www.britannica.com/topic/Shii

[ii] “Primavera Árabe, onda de protestos e revoltas pró-democracia que ocorreram no Médio Oriente e no Norte de África a partir de 2010 e 2011, desafiando alguns dos regimes autoritários entrincheirados da região. A onda começou quando protestos na Tunísia e no Egipto derrubaram os seus regimes em rápida sucessão, inspirando tentativas semelhantes noutros países árabes” (BRITANNICA, 2024).

[iii] “Força Quds , ala clandestina de elite do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã (IRGC), responsável principalmente por suas operações estrangeiras. Organizada logo após a Revolução Iraniana (1978-79), as suas atividades centraram-se na organização, apoio e, por vezes, liderança de forças locais no estrangeiro de forma favorável aos interesses do IRGC e do estabelecimento clerical do Irã .” (BRITANNICA, 2024)

[iv] “Segundo o serviço persa da BBC, este eixo, marcadamente antiamericano e anti-Israel, é composto principalmente pelo Irã, Síria, grupo Hezbollah no Líbano, milícias xiitas no Iraque, Afeganistão e Paquistão, grupos militantes nos territórios palestino e os Houthis” (BBB, 2023).

Publicado em Houthis, Irã, Israel, Oriente Médio | Deixe um comentário

As novas eleições venezuelanas e seus possíveis desdobramentos para as relações Brasil-Venezuela.

Larissa Silva Ferreira

Pedro Guimarães

Resumo

Desde 2013, a Venezuela passa por crises políticas e institucionais que têm deteriorado ainda mais a democracia do país. Após uma série de negociações entre governo e oposição, foi decidido em diálogos com intermediação internacional, que eleições presidenciais com a participação da oposição irão ocorrer no segundo semestre de 2024. No entanto, com o recém impedimento de participação ao pleito pela líder da oposição, as críticas ao governo Maduro retomaram, inclusive pelo Governo Lula, que manteve apoio a Maduro. O presente artigo busca recapitular a crise venezuelana e apresentar as recentes tentativas de avanço a normalização política do país, bem como a importância do Brasil para a resolução da questão.

Introdução

A Venezuela tem, desde 2013, passado por uma grave crise socioeconômica, política e humanitária, tendo como ponto importante a acirrada disputa eleitoral do sucessor político de Hugo Chávez, Nicolás Maduro, contra o candidato do partido Primeiro Justiça, Henrique Caprilles. O primeiro mandato de Maduro ocorreu em contexto de emergência da recessão econômica no país devido à queda internacional do petróleo em 2014. Durante o primeiro mandato, Maduro enfrentou diversos protestos populares e, em 2015, a oposição ao chavismo[1] assumiu pela primeira vez em vinte anos a maioria na Assembleia Nacional, aprofundando o impasse político no país. Em 2018, o então presidente foi reeleito para um novo mandato de 6 anos em meio a contestações do processo eleitoral tanto no plano doméstico quanto internacionalmente. Em janeiro de 2019, a Assembleia Nacional (AN) declarou ilegítimas as eleições e o então líder da oposição e da AN, Juan Guaidó, declarou-se presidente interino do país [2], recebendo inclusive apoio dos Estados Unidos, Canadá, países da União Europeia, da Organização dos Estados Americanos e do Grupo de Lima [3]. Maduro, por sua vez, manteve apoio das forças armadas do país, foi internacionalmente apoiado pela China e Rússia e se mantém até os dias de hoje no governo (CFR, 2024).

Para compreender a crise venezuelana bem como o interesse internacional na questão, é importante delinear a dimensão estrutural da crise. A Venezuela possui uma das maiores reservas de petróleo do mundo, e a consolidação do petróleo como força motriz da economia do país contribuiu para a queda do investimento no setor agrário e no desenvolvimento da indústria ao longo do século XX (Pedroso, 2020), levando, dessa forma, à especialização produtiva e à dependência de importação de bens de consumo. Nesse sentido, ainda que a entrada de divisas pela venda do petróleo tenha sido a responsável por financiar obras de infraestrutura, de seguridade social e para a importação de bens e produtos básicos para o país, com a queda internacional do preço do barril em 2014, somado à  sequência de sanções à produção e ao comércio do petróleo venezuelano, e dos bloqueios aos ativos financeiros impostos pelos Estados Unidos, a Venezuela adentrou em uma grave crise, com repercussões nos países fronteiriços, principalmente pelos fluxos migratórios.

Desde 2017 o país sofre os efeitos da hiperinflação, com a desvalorização rápida da moeda e com o desabastecimento de bens de primeira necessidade para a população, como alimentos e medicamentos, resultando em uma crise migratória, com grande parcela da população em busca por refúgio nos países fronteiriços. Países como Chile, Colômbia e Equador receberam cerca de 5 milhões de venezuelanos em suas fronteiras, enquanto que o Brasil recebeu 400 mil venezuelanos (Montanini, 2023).

Situação atual

Em decorrência da invasão russa à Ucrânia em 2022 e das sanções econômicas impostas à Rússia pelos membros da OTAN, que incluem a proibição de importação de petróleo do país, uma crise energética e inflacionária na Europa e Estados Unidos foi provocada. Para contornar a situação, iniciou-se um movimento por parte do governo Biden para tentativa de normalização das relações com a Venezuela, e para a retomada da importação de petróleo do país como alternativa ao petróleo russo, em troca da retirada das sanções econômicas impostas ao país durante o governo Trump. Em 5 de março de 2022, uma delegação estadunidense se encontrou com o governo de Maduro e, oficialmente, foi discutido no encontro a liberação de cidadãos americanos presos na Venezuela, além da retomada das negociações entre governo venezuelano e a oposição do país (Charleaux, 2022).

As negociações em questão foram iniciadas no México, com mediação da Noruega e em novo encontro realizado em outubro de 2023, em Barbados, chegou-se a um acordo para realização de eleições presidenciais, para ocorrerem no segundo semestre de 2024. Os termos do acordo incluíam eleições justas, com a participação dos partidos opositores (que em eleições passadas se recusaram a participar, em uma espécie de ‘boicote’), transparentes e com a presença de observadores internacionais (El País, 2023). Em decorrência do acordo, os Estados Unidos retiraram temporariamente algumas das sanções ao petróleo, gás e ouro venezuelano, havendo ainda a troca de prisioneiros entre os dois países durante o ano de 2022 (BBC, 2023).

Em outubro de 2023, deu-se início às primárias, em que a opositora do governo, a ex-deputada Maria Corina Machado venceu com mais de 90% dos votos válidos para concorrer nas eleições presidenciais contra Maduro. No entanto, a Suprema Corte do país declarou, em janeiro de 2024, a inegibilidade política da candidata por quinze anos, sob justificativa de participação de Machado na conspiração liderada por Juan Guaidó para assumir a presidência e por defender a aplicação de sanções econômicas contra o país (Carta Capital). Diante desse quadro, Machado anunciou, em 22 de março, a indicação da professora Corina Yoris como sua substituta para o pleito, mas a nova candidata também não conseguiu registrar sua candidatura no sistema da comissão eleitoral e diante disso, a Plataforma Unitária Democrática, – coalizão opositora ao governo -, por fim, registrou provisoriamente o Embaixador Edmundo Gonzalez. Mas outro candidato que se tornou destaque após a preferida ter sido desqualificada foi Manuel Rosales, governador da região de Zulia, e ex-candidato à presidência em 2006 contra Hugo Chávez (Montanini, 2024). 

A posição do Brasil diante desse cenário

Diante desse quadro, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil emitiu, em 26 de março de 2024, uma nota de preocupação com a situação política da Venezuela, destacando a falta de explicação oficial para o impedimento da candidata indicada pela chapa Plataforma Unitária, o que não seria compatível com os acordos de Barbados. Em resposta, o chanceler venezuelano, Yvan Gil, criticou o Brasil, acusando o pronunciamento de ser intervencionista e de parecer “ter sido ditado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos” (Nexo, 2024). Em contramão da posição tradicionalmente adotada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criticou, pela primeira vez, de forma direta o governo Maduro, também pela ausência da principal opositora nas eleições de 28 de julho de 2024 (Nexo, 2024).

As relações político-diplomáticas entre os dois países são caracterizadas por Cervo, (2001), como cooperativas durante o século XX e convergentes desde a ascensão do Presidente Chávez na Venezuela, em 1999, e do Presidente Lula no Brasil em 2002. Ambos de esquerda, os líderes promoveram, ao longo da primeira década dos anos 2000, projetos políticos de integração regional, representados pela Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) e pela União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), que buscavam sobretudo autonomia da região, sendo os dois projetos, nesse sentido, concorrentes mas não necessariamente divergentes na busca pela liderança regional, havendo ainda, no período, crescimento das relações econômicas e comerciais (Pedroso, 2015). Nesse sentido, a despeito de todas as críticas que Chávez recebia internacionalmente, Lula manteve o apoio e a parceria estratégica com o líder venezuelano, que se estendeu posteriormente ao sucessor de Chávez, Nicolás Maduro.

A deterioração das relações entre Brasil e Venezuela iniciou-se, principalmente, durante o governo Temer (2016-2018). Em decorrência dos intensos protestos ocorridos em 2017 na capital Caracas, que levaram à morte de 127 pessoas, o Brasil defendeu a suspensão definitiva da Venezuela do Mercosul, e em resposta, o governo de Maduro expulsou o embaixador brasileiro Ruy Pereira do país. No governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), o tensionamento na relação entre os dois países foi agravada principalmente pelo antagonismo ideológico entre os dois presidentes, com Bolsonaro utilizando ainda durante a campanha eleitoral a expressão “o Brasil vai virar Venezuela” de maneira pejorativa, para ganho de capital político. Já como presidente, Bolsonaro reconheceu o presidente da Assembleia Nacional Juan Guaidó como representante legítimo do país e em seguida as relações diplomáticas entre os dois Estados foram rompidas, sendo restabelecidas no terceiro governo Lula (Montanini, 2023).

A retomada das relações diplomáticas entre os países é importante para ambos os governos. Do ponto de vista econômico, durante os dois primeiros governos Lula, o Brasil foi um dos principais parceiros comerciais da Venezuela, sendo um dos principais fornecedores de alimentos ao país, algo que se modificou em decorrência tanto da crise venezuelana quanto da crise econômica brasileira em 2015 (Pedroso, 2015; Montanini, 2023). A sinalização de normalização das relações bilaterais é marcada principalmente com o encontro dos dois mandatários em maio de 2023, através da cúpula com 11 chefes de Estado da América do Sul, em que Lula defendeu a legitimidade de Maduro como presidente do país (Após quase oito anos,… 2023).

No que se refere à política internacional, percebe-se durante o governo Lula o retorno a uma política externa que busca retomar a liderança do Brasil na América do Sul, através da participação ativa na resolução dos conflitos regionais. No entanto o que se percebe, principalmente diante da situação venezuelana, é um papel mais restrito, não apenas porque reflete um dos princípios basilares da política externa do Brasil que se refere a não interferência em assuntos de natureza doméstica de outros países, mas também a posição do governo Lula que possui relativa proximidade com o governo Maduro. A posição pouco crítica do Brasil, por outro lado, abre ainda mais margem para maiores tentativas de interferência estrangeira na questão, havendo nesse sentido perda do protagonismo do Brasil como um ator capaz de promover estabilidade e soluções pacíficas de controvérsias na região.

Considerações finais

O Brasil, enquanto potência regional, desempenha papel importante como mediador nos conflitos sul-americanos, papel esse que foi relegado durante o governo Bolsonaro e é retomado no terceiro governo Lula. A normalização da política venezuelana é importante para a estabilidade regional e de grande interesse da diplomacia brasileira para a promoção dos interesses brasileiros na região e para se evitar a ingerência de potências externas, principalmente por parte dos Estados Unidos. A condução do governo Maduro no processo eleitoral, por outro lado, associado à falta de comprometimento com os acordos de Barbados, afasta ainda mais a possibilidade de retirada dos embargos econômicos e de um acordo duradouro com a oposição para estabilização da Venezuela.

Ainda que grande parte da situação humanitária e econômica na qual se encontra hoje a Venezuela é em grande medida consequência dos embargos unilaterais promovidos pelos Estados Unidos, é inegável também a responsabilidade do governo atual, que escalou em processos que são considerados como autoritários. A realização de eleições baseadas nos acordos realizados em 2023 é importante para que o isolamento diplomático do país diminua e nesse sentido, uma resposta duradoura à crise possa ser construída.

REFERÊNCIAS

BBC. EUA retiram sanções ao petróleo da Venezuela: entenda acordo que levou à decisão. 19 OUT. 2023. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51jr5pr9d1o> Acesso em: 07 abr. 2024.

CARTA CAPITAL. Suprema Corte da Venezuela confirma a inelegibilidade de María Corina Machado. 26 jan. 2024. Disponível em:<https://www.cartacapital.com.br/mundo/suprema-corte-da-venezuela-confirma-a-inelegibilidade-de-maria-corina-machado/> Acesso em: 07 abr. 2024.

CERVO, Amado Luiz. A Venezuela e seus vizinhos. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro e CARDIM, Carlos Henrique (Orgs.). Venezuela: visões brasileiras: IPRI, 2003. Disponivel em:<https://funag.gov.br/loja/download/257-Venezuela_Visoes_Brasileiras.pdf >

CFR.  Venezuela Crisis. Global Conflict Tracker. Disponível em: <https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/instability-venezuela> Acesso em: 06 abr. 2024.

CHARLEAUX, João Paulo. Como a guerra força a aproximação entre EUA e Venezuela. 14 mar. 2024. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/03/14/Como-a-guerra-for%C3%A7a-a-aproxima%C3%A7%C3%A3o-entre-EUA-e-Venezuela&gt; Acesso em: 07 abr. 2024.

DW. Após quase 8 anos, Maduro visita o Brasil e encontra Lula. 29 mai. 2023. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/ap%C3%B3s-quase-8-anos-maduro-visita-o-brasil-e-encontra-lula/a-65764864> Acesso em 08 abr. 2024.

G1. “É grave” diz Lula sobre candidata da oposição barrada de concorrer às eleições na Venezuela. 28 mar.2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/28/lula-comenta-eleicoes-venezuela.ghtml> Acesso em 10 abr.2024.

MATOSO, Felipe. Além do Brasil, outros 11 países manifestam preocupação com eleições na Venezuela. 27 abr.2024.G1. Disponível em : <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/27/alem-do-brasil-outros-paises-manifestam-preocupacao-com-eleicoes-na-venezuela.ghtml> Acesso em: 10 abr.2024

MONTANINI, Marcelo. A retomada de relações entre Brasil e Venezuela. 22 jan. 2024. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/01/22/a-retomada-de-relacoes-entre-brasil-e-venezuela> Acesso em: 08 abr. 2024. 

MONTANINI, Marcelo. Por que a ilusão de uma eleição justa durou pouco na Venezuela. 27 mar. 2024. Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/03/27/politica-eleicao-presidente-venezuela-2024-oposicao> . Acesso em : 06 abr.2024

NEXO. Itamaraty cita ‘preocupação’ com eleições da Venezuela. 26 mar. 2024. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/extra/2024/03/26/itamaraty-eleicoes-venezuela-opositora-impedida> Acesso em: 07 abr. 2024.

NEXO. ‘É grave’, diz Lula sobre candidata barrada na Venezuela. 28 mar. 2024.  Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/extra/2024/03/28/lula-critica-eleicoes-venezuela> Acesso em: 07 abr. 2024.

O GLOBO. Venezuela : Não podemos abrir totalmente o champagne” diz Celso Amorim após acordo nas eleições venezuelanas. 19 out.2023.Disponível em : <https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/10/19/venezuela-nao-podemos-abrir-totalmente-a-champanhe-diz-celso-amorim-apos-acordo-sobre-eleicoes.ghtml>. Acesso em: 09 abr.2024

SILVA PEDROSO, C. Petróleo e Poder: a crise venezuelana e seus elementos históricos. Textos e Debates, [S. l.], v. 1, n. 34, 2020. DOI: 10.18227/2317-1448 ted.v1i34.6415. Disponível em: <https://revista.ufrr.br/textosedebates/article/view/6415>. Acesso em: 06 abr. 2024.

PEDROSO, C. S. As relações Brasil-Venezuela: entre a rivalidade e a cooperação (2002-2010). Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, [S. l.], v. 4, n. 7, p. 143–164, 2015.  Disponível em:< https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/4204>. Acesso em: 08 abr. 2024.

SINGER, Florantonia. Venezuela and the opposition agree to hold presidential elections in second half of 2024. 18 out. 2023. El Pais. Disponível em: <https://english.elpais.com/international/2023-10-18/venezuela-and-the-opposition-agree-to-hold-presidential-elections-in-second-half-of-2024.html> Acesso em: 07 abr. 2024.

Notas

[i] Chavismo: é a denominação ao fenômeno politico associado ao ex presidente Hugo Chávez que se caracteriza pelo seu personalismo, discurso nacionalista, antioligárquico e anti-imperialista.

[ii] Juan Guaidó: Apesar do reconhecimento por parte de alguns Estados como os Estados Unidos e alguns países da União Europeia da autoproclamação de presidente interino da Venezuela, Guaidó não possuía apoio popular e, após o fim do mandato como deputado, diversos países retiraram o reconhecimento do parlamentar, que não obteve desde que se proclamou presidente, força institucional para de fato derrubar o governo Maduro.

[iii] No breve governo Temer, o país integrou o Grupo de Lima, agrupamento criado por 14 países da região para tratar da crise venezuelana.

Publicado em América do Sul, Crise, eleições, Venezuela | Deixe um comentário

Autoimolação e Anticolonialismo: o caso de Aaron Bushnell

Gabriel Fabri de Carvalho

Resumo

A autoimolação enquanto forma de protesto tem sido motivo de choque por parte da comunidade internacional há muito tempo, sendo um dos casos mais famosos o protesto feito pelo monge budista Thích Quảng Đức, em 1963. A recente ação de Aaron Bushnell em frente à Embaixada de Israel em Washington, D.C., reacendeu discussões sobre a história e o impacto da autoimolação como forma de protesto. Este ato extremo, motivado pela percepção de Bushnell de sua cumplicidade no que ele descreveu como “genocídio” dos palestinos no processo de invasão da Faixa de Gaza pelas forças armadas de Israel, chama a atenção para uma tradição de longa data de indivíduos que se sacrificam em protesto político. Este artigo busca explorar o contexto do protesto de Aaron Bushnell e o histórico das autoimolações como forma de protesto.

Protesto de Aaron Bushnell:

Aaron Bushnell, um então membro ativo da Força Aérea dos Estados Unidos, chocou o mundo ao se auto imolar em frente à Embaixada de Israel em Washington, D.C. O ato ocorreu em 25 de fevereiro de 2024, quando Bushnell, vestido com seu uniforme militar, acendeu-se em chamas como uma forma extrema de protesto contra o que ele considerava um genocídio dos palestinos no conflito entre Israel e Hamas. Transmitindo ao vivo via Twitch, uma plataforma de streaming  online, Bushnell gritou “Free Palestine!” (Palestina livre) enquanto se consumia pelas chamas, declarando sua recusa em ser cúmplice do que ele via como evidentes abusos contra o povo palestino.

A operação militar conduzida pela Israel Defense Force (IDF) em resposta às ações do Hamas, organização palestina cujo braço militar promoveu os ataques do dia 7 de Outubro de 2023, tem gerado muitos questionamentos por parte da comunidade internacional. Tendo muitos especialistas e líderes mundiais apontado violações aos Direitos Humanos intencionais por parte das IDF. Dentre esses especialistas vale pontuar a fala de Kenneth Roth, previamente diretor executivo da Humans Rights Watch, organização referência em relação à defesa dos Direitos Humanos. Roth, em entrevista à agência de notícias PBS, afirmou:

“Eu acredito que não há muita dúvida de que o nível de assassinatos, o nível de privação é suficiente para atender àquela parte do crime de genocídio. […] Yoav Gallant, ministro da defesa, disse que ele está indo atrás – que eles estão lutando contra animais humanos. Ele diz, oh, eu só quis dizer o Hamas, mas, na verdade, se você ouvi-lo, ele estava falando sobre o cerco, que é de todos em Gaza. […] Então tudo isso é intenção genocida. E então eles também trabalharam de trás para frente a partir dos atos no terreno para dizer que, porque Israel está bombardeando de forma tão indiscriminada, porque está usando essas enormes bombas de 2.000 libras em áreas densamente povoadas, isso também mostra uma indiferença à vida civil palestina, o que por si só é indicativo de intenção genocida.” (ROTH, Kenneth. 2024. Tradução Nossa)

Tendo isso em vista, a ação de Bushnell gerou reações intensas da mídia, do público e das autoridades, chamando atenção para questões de conflito no Oriente Médio e o papel dos Estados Unidos nesse contexto. O protesto de Bushnell é o mais recente exemplo de autoimolação como forma de protesto extremo ante a violações dos Direitos Humanos e dos projetos neocoloniais de exploração humana. Como evidenciado pelo discurso de Bushnell momentos antes de sua autoimolação: “Estou prestes a me envolver em um ato extremo de protesto, mas em comparação com o que as pessoas têm experimentado na Palestina pelas mãos de seus colonizadores, isso não é nada extremo. É isso que nossa classe dominante decidiu que será considerado normal.” (RAHMAN, 2024. Tradução nossa).

Contexto Histórico da Autoimolação:

A autoimolação tem uma longa e complexa história como forma de protesto. Originária de tradições antigas, como os contos hindus de Sati e os atos de resistência dos primeiros cristãos, a autoimolação moderna ganhou destaque durante o século XX como uma forma de protesto político. Um dos exemplos mais icônicos é o protesto de Thích Quảng Đức durante a Guerra do Vietnã, quando o monge budista vietnamita queimou-se em praça pública para protestar contra a perseguição religiosa pelo governo sul-vietnamita.

Além do exemplo marcante de Thích Quảng Đức durante a Guerra do Vietnã, a prática da autoimolação como forma de protesto nos Estados Unidos reflete uma interseção complexa entre desespero, indignação e engajamento político. Esses casos destacam não apenas a profundidade do sofrimento e da insatisfação de certos grupos dentro da sociedade estadunidense, mas também a natureza radical dos meios que alguns indivíduos estão dispostos a adotar para chamar a atenção para suas causas.

Da mesma forma, a autoimolação de George Winne Jr. na Revelle Plaza no campus da Universidade da Califórnia em San Diego. Durante os protestos contra a Guerra do Vietnã em 1970 foi um ato de desespero e revolta contra as políticas de guerra do governo dos Estados Unidos, naquele momento, contra o Vietnã. Norman Morrison também foi um dos manifestantes que se autoimolou em protesto contra a Guerra do Vietnã em 1970. Ele era um Quaker [i] e pacifista que estava perturbado com o envolvimento dos Estados Unidos no conflito. Morrison, assim como George Winne Jr., via na autoimolação uma maneira de chamar a atenção para as consequências devastadoras da guerra e desafiar a complacência da sociedade em relação à violência militar. (TUCKER, 2000)

Esses casos de autoimolação nos Estados Unidos destacam não apenas a intensidade do desespero e da indignação que permeiam certas pautas, mas também levantam questões mais amplas sobre os limites do ativismo político e os dilemas éticos associados a formas extremas de resistência. Enquanto alguns podem ver esses atos como gestos heroicos de resistência, outros podem questionar sua eficácia e os custos humanos envolvidos. No entanto, é inegável que a autoimolação como forma de protesto político continua a desempenhar um papel poderoso e provocativo na arena pública, provocando debates significativos sobre questões humanitárias nos Estados Unidos .

Dentre os casos contemporâneos de autoimolação, o mais emblemático deles se encontra na figura do tunisino Mohamed Bouazizi. Sua atitude desesperada em dezembro de 2010, ao se incendiar em protesto contra a opressão e a corrupção sistêmica, tornou-se o catalisador da Primavera Árabe. Bouazizi, um vendedor ambulante de frutas e vegetais, foi forçado a cometer esse ato extremo depois que as autoridades confiscaram suas balanças e se recusaram a ouvir suas queixas. Sua ação desencadeou uma onda de protestos em todo o país, culminando na queda do regime do presidente Ben Ali e inspirando movimentos de resistência em toda a região do Oriente Médio e Norte da África. Bouazizi tornou-se um símbolo de resistência e luta pela justiça e dignidade, seu sacrifício ecoando através dos anos como um lembrete das profundas injustiças enfrentadas por muitos em todo o mundo. (Al Jazeera, 2020)

Impacto Global e Exemplos Contemporâneos:

O ato extremo de protesto praticado por Bushnell gerou uma série de reações tanto a nível internacional quanto nacional. O Hamas foi talvez o primeiro ator envolvido no conflito a emitir uma declaração. No dia 27 de Fevereiro de 2024 o grupo expressou condolências sinceras aos parentes e amigos. O grupo expressou solidariedade à família de Bushnell, afirmando que ele imortalizou seu nome como defensor dos valores humanos e contra a opressão do povo palestino devido às políticas injustas da administração estadunidense. O Hamas destacou que Bushnell deu sua vida para destacar os “massacres e genocídio sionista” contra os palestinos, equiparando-o à ativista americana Rachel Corrie [ii].

“A administração do presidente dos EUA (Joe) Biden tem responsabilidade total pela morte do piloto do Exército dos Estados Unidos Aaron Bushnell devido à sua política de apoiar a entidade Nazi Sionista nesta guerra de exterminação contra o nosso povo Palestino, ele deu sua vida em função de trazer luz no massacre Sionista e limpeza etnica contra o nosso povo na Faixa de Gaza” (THE NEW ARAB, 2024).

Do lado estadunidense, até o momento nem os veículos oficiais do governo nem o Exército tiveram uma declaração oficial concreta a respeito do caso. No entanto, um grupo de veteranos dos EUA, Veterans for Peace (VFP), culpou os formuladores de políticas pela morte de Bushnell. Eles acusaram os formuladores de políticas de serem “piromaníacos loucos” que seguem ordens daqueles que lucram com a morte e o sofrimento, além de responsabilizar as empresas que financiam a indústria de armamentos. O VFP destacou que poucos têm a coragem de realizar protestos extremos como o de Bushnell e acusou os formuladores de políticas de acenderem o fogo que levou à sua morte.

Autoimolação e a Luta Anticolonialista

Frantz Fanon, em sua obra seminal “Os Condenados da Terra”, destaca a importância da resistência violenta como uma resposta legítima à subjugação colonial. Fanon argumenta que a violência pode ser uma ferramenta eficaz para desmantelar as estruturas coloniais de opressão e afirmar a dignidade e a autonomia dos povos colonizados. Nesse contexto, a autoimolação pode ser vista como um ato extremo de resistência que desafia diretamente o poder colonial e evoca uma resposta emocional e moral. Um exemplo emblemático de autoimolação como protesto anti colonial ocorreu na Índia durante o movimento pela independência liderado por Mahatma Gandhi. Embora Gandhi tenha advogado pela não violência, outros ativistas indianos, como Bhagat Singh, optaram por formas mais radicais de resistência, incluindo a autoimolação, como um meio de desafiar o domínio britânico e inspirar o sentimento nacionalista.

Além disso, autores como Edward Said, em “O Orientalismo”, abordam as representações estereotipadas e desumanizantes dos colonizados pelos colonizadores, destacando a necessidade de reivindicar a agência e a voz dos povos colonizados. A autoimolação pode ser vista como uma forma de agência individual e uma expressão de protesto contra a desumanização imposta pelo colonialismo. Ao examinar a história da autoimolação em contextos anticoloniais, é crucial reconhecer as complexidades e nuances desses atos de resistência. Embora possam ser vistos como atos de desespero, também refletem um profundo senso de dignidade e um apelo à consciência moral da comunidade internacional. Através desses exemplos, é possível entender a autoimolação como uma forma extrema de protesto que ressoa com as aspirações por liberdade, justiça e autodeterminação em todo o mundo colonial.

Considerações finais

A autoimolação de Aaron Bushnell diante da Embaixada de Israel em Washington, D.C., representa um evento que levanta questões profundas sobre os limites do protesto político e os dilemas éticos associados a formas extremas de resistência. Enquanto a autoimolação historicamente serviu como uma ferramenta para destacar injustiças e mobilizar consciências, seu impacto efetivo como estratégia de mudança política é objeto de debate. Neste contexto, é fundamental situar o ato de Bushnell dentro do contexto mais amplo do conflito israelense-palestino e das dinâmicas geopolíticas que moldaram suas percepções e ações.

A escolha de Bushnell de se autoimolar foi motivada pela comoção ante a causa palestina, fortemente inspirado pelo movimento anticolonialista e sua indignação ante violações de direitos humanos na região. Além disso, a resposta oficial e pública ao protesto de Bushnell destaca as divisões ideológicas e políticas que permeiam o debate sobre o conflito israelense-palestino. Enquanto organizações como o Hamas e associações de veteranos estadunidenses expressaram solidariedade com Bushnell e sua causa, o governo dos Estados Unidos tem sido mais cauteloso em sua resposta, refletindo uma dificuldade em manter suas políticas em relação ao conflito ante a comoção popular vivenciada domesticamente.

BIBLIOGRAFIA

SCHIFRIN, Nick. Experts give 2 perspectives on accusations Israel is committing genocide in Gaza. PBS,11 de Janeiro, 2024. Disponível em: <https://www.pbs.org/newshour/show/experts-give-2-perspectives-on-accusations-israel-is-committing-genocide-in-gaza>

RAHMAN, Khaleda. Newsweek, 27 de Fevereiro, 2024. Disponível em: <https://www.newsweek.com/who-aaron-bushnell-us-airman-fire-israeli-embassy-washington-dc-palestine-1873212>

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. FERREIRA, Manuel.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

GULDOGAN, Diyar. AA. 27 de Fevereiro, 2024. Disponível em: <https://www.aa.com.tr/en/americas/biden-administration-responsible-for-death-of-us-airman-hamas/3148613>

HAMAS BLAMES US FOR DEATH OF ‘HEROIC’ AIRMAN AARON BUSHNELL WHO SET HIMSELF ON FIRE OVER GAZA. The New Arab. 27 de Fevereiro, 2024. Disponível em: <https://www.newarab.com/news/hamas-blames-us-death-heroic-airman-aaron-bushnell>

ARRAF, Jane. NPR, 30 de Março, 2024. Disponível em: <https://www.npr.org/2024/03/30/1241231447/rachel-corrie-gaza-palestinians-aid-israel-hamas-war>

BURGA, Solcyré. SHAH, Simone. TIME. 6 de Março, 2024. Disponível em; <https://time.com/6835364/self-immolation-history-israel-hamas-war/&gt;

LAGEMAN, Thessa. AL JAZEERA. 17 de Dezembro, 2020. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/features/2020/12/17/remembering-mohamed-bouazizi-his-death-triggered-the-arab>

TUCKER, Spencer C. The Encyclopedia of the Vietnam War: A Political, Social, and Military History. Londres: Oxford University Press, 2000.

QUAKER. In: Cambridge Dictionary, Cambridge University, 1995. Disponível em: <https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/quaker&gt;


Notas

[i] A member of a Christian group, called the Society of Friends, that does not have formal ceremonies or a formal system of beliefs, and is strongly opposed to violence and war (CAMBRIDGE DICTIONARY)

[ii] Rachel Corrie, uma ativista americana, foi morta por um trator de Israel enquanto protestava contra demolições de casas em Gaza em 2003. Sua morte continua a ressoar como um símbolo de resistência contra a ocupação israelense e destruição em Gaza. (ARAF, Jane. 2024)

Publicado em Autoimolação, Israel, Palestina, protestos | Deixe um comentário