Futebol e diplomacia: caso Irã e Arábia Saudita

Isadora Ferreira da Rocha Oliveira

Resumo

Em uma região instável, devido às diferenças ideológicas entre seus membros, a relação entre Arábia Saudita e Irã e suas disputas por relevância local foram consideradas como  novo exemplo de uma guerra fria. Após 7 anos do rompimento diplomático entre ambos, a volta das relações entre estes países foi marcada pelo futebol. Este artigo visa apresentar as raízes do conflito entre estas potências regionais e a utilização, não apenas por estes atores, do futebol como um artifício diplomático.

Introdução

A polarização, tão comum atualmente, não é um elemento estranho ao maior esporte do mundo, o futebol,  com rivalidades entre diferentes times sendo motivos para discussões familiares e, algumas vezes, para a violência física. Contudo, esse esporte também vem sendo usado como palco para discussões políticas, como o racismo (APÓS …, 2023) e,  além disso, também foi cooptado, de modo simbólico, por antigos rivais, para  representar sua reaproximação (Salem, 2023).

A relação entre Arábia Saudita e Irã já foi comparada, por alguns autores, com o relacionamento conflituoso dos Estados Unidos e da União Soviética, durante os anos da Guerra Fria (Turrer, 2016), com governos que, apesar de terem aspectos do Islã muito presentes em suas constituições, possuem divergências ideológicas basilares para esta religião: sendo o governo iraniano de maioria xiita, enquanto os sauditas possuem uma maioria sunita (ibidem). Esta diferença faz referência a uma discussão presente desde a morte do profeta Maomé, sobre quem teria o direito de sucedê-lo como califa do Islã (Turrer, 2016). Aqueles que apoiam o pai da esposa do profeta, Abu Bakr, são denominados sunitas; em contrapartida, os favoráveis a Ali Ibn Abi Talib, primo e cunhado do líder religioso, são conclamados xiitas (ibidem). Esta diferença entre os governos fundamenta a maneira pela qual estes se posicionam e a quais países, e causas, apoiar.

Com a queda de Saddam Hussein, governante iraquiano, em 2003, a região do Oriente Médio perdeu um líder de considerável influência, e em vistas de suprir esta lacuna, a república iraniana e a monarquia saudita passaram a buscar um papel de mais relevância perante seus vizinhos (Marcus, 2019), principalmente o governo de Teerã (capital do Irã), devido a semelhanças ideológicas (ambos são grandes potências xiitas). Entretanto, a agência destes passa a ter mais destaque a partir da Primavera Arabe (i), na qual ambos passam a se aproveitar do enfraquecimento dos envolvidos e tentam “se posicionar como patronos de seus respectivos clãs religiosos” (Turrer, 2016).

Desta forma, as posições saudita e iraniana, em relação aos conflitos ocasionados por efeito dos eventos da Primavera Arabe, foram marcadas pelas ideologias dos envolvidos  (Marcus, 2019). Ou seja, ao mesmo tempo em que o governo saudita apoiava o governo do Egito e da Jordânia, eles também apoiaram  grupos revolucionários sírios, por exemplo, em razão destes possuírem a mesma visão ideológica (sunitas) que Riad (capital saudita)  (Marcus, 2019). Do mesmo modo, Teerã o fazia com Bashar Al-Assad (ditador sírio) e o grupo líbanes Hezbollah, para o combate aos sunitas (ibidem). Portanto, tais financiamentos, podem ser qualificados como um proxy war (guerra de procuração), que pressupõe o envolvimento destes, sem sua participação de modo efetivo e concreto, em conflitos em determinados locais afins de alterar seu resultado para atender suas expectativas e interesses estratégicos ou ideológicos (Baugh, 2024).

A partir de 2015, o relacionamento destes Estados tornou-se mais complicado, em consequência da atuação saudita, contrária ao acordo que previa a limitação dos iranianos a equipamentos para a continuação de seu projeto nuclear (Marcus, 2019). Pois, de acordo com os representantes do governo de Riad, as contenções não eram suficientes para reprimir Teerã (Marcus, 2019).

Todavia, o estopim para o rompimento de relações entre eles se deu em virtude a ataques de protestantes iranianos, em 2016, à embaixada saudita, localizada em Teerã, após a execução de um clérigo xiita, que advogava a favor da minoria e causas xiitas, afora as duras críticas que realizava contra a família real Saud (Turrer, 2016). De acordo com o acadêmico Toby Matthiensen, entrevistado pelo jornalista brasileiro Rodrigo Turrer (2016), esta quebra oficial pode ser definida como a Crise dos Mísseis do Oriente Médio. Matthiesen se refere a um dos episódios mais dramáticos da Guerra Fria, em 1962, quando o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear. “Isso é ruim para todo o Oriente Médio, porque há uma tensão generalizada entre sunitas e xiitas, patrocinada por sauditas e iranianos, e que pode sair do controle” (Turrer, 2016).

Esta separação foi sentida em várias camadas em ambas as sociedades, tendo como um exemplo o futebol. O relacionamento já conturbado entre estes Estados refletiu-se no esporte devido ao fato de que, tanto os times quanto a seleção baseadas nestes, passavam a não poder mais jogar em seus respectivos territórios, devendo suas partidas ocorrer em locais neutros (Salem, 2023). Ou seja, os jogadores e equipe técnica, apesar de não terem, necessariamente, ligações diretas com o governo do país no qual residem, passaram, também, a serem creditados como persona non grata (ii); tornando esta cisão ainda mais profunda, ao separar não apenas governos, mas também suas sociedades.

V.A.R – “Vamos Analisar a situação e nos Resolver”

Decorridos 7 anos da suspensão das relações entre Irã e Arábia Saudita, o ator responsável por mediar a volta deles à mesa de debate, foi a China (IRÃ …, 2023); pegando de surpresa o governo estadunidense, que, há algumas décadas, havia se tornado uma figura influente na política saudita. Washington declarou que apesar de sua satisfação pela retomada da relação bilateral, Riad deveria ter cautela para com Teerã (ibidem).

Ao fim do anúncio das reaberturas das embaixadas, ambos os governantes, o presidente Raisi e o rei Salman, trocaram convites para visitações para seus respectivos países (IRÃ…, 2023). Este movimento deve ser interpretado de modo sério ao indicar que estas potências estão, de fato, dispostas a restabelecer o diálogo. E o palco escolhido para a demonstração dessa retomada foi o futebol.

Com os crescentes investimentos feitos pelos sauditas em seus times e sua seleção, grandes nomes do futebol estão presentes em seu elenco, como o 5 vezes bola de ouro Cristiano Ronaldo (atual jogador do Al – Nassr)  e o brasileiro Neymar Jr (atual jogador do Al – Hilal) (Salem, 2023), tornando para os fãs do esporte cada jogo um espetáculo. Deste modo, com a recuperação do relacionamento bilateral entre os governos de Teerã e Riad, houve, também, a possibilidade de as partidas entre seus times serem realizadas tanto no Irã quanto na Arábia Saudita. Isso se deve a um acordo promovido pelas federações de ambos os países que só foi possível graças ao reatamento entre seus governos (‘HISTORIC’…, 2023). Como argumentou o presidente da Liga dos Campeões Asiática, Salman Bin Ibrahim Al-Khalifa (ibidem), em um post da rede social X: “A decisão das federações de futebol dos dois países contribuirá para “promover laços mais estreitos entre as respetivas comunidades futebolísticas, permitindo aos clubes receberem jogos no seu território e visitarem os respectivos estádios fora de casa, criando uma experiência mais envolvente e emocionante tanto para os adeptos quanto  para os jogadores” (tradução nossa).

 Diplomacia das chuteiras

Entretanto, esta não foi a única vez em que um governo utilizou-se do futebol como um aparato de sua diplomacia. No Brasil, por exemplo, este artifício já foi empregado algumas vezes. Como durante a Operação de Paz no Haiti (iii), em 2004, na qual o exército brasileiro juntamente com a seleção brasileira, então campeã do mundo em 2002, em um esforço para a demonstração de solidariedade e de propaganda em favor desta operação, organizou um amistoso entre a seleção canarinho e a haitiana (SELEÇÃO…, 2015).

Durante o trajeto dos jogadores brasileiros até o estádio, em Porto Príncipe (capital do Haiti), estes foram transportados em tanques de guerra que transitavam pela cidade, cercados por seus cidadãos que pareciam animados com a expectativa de presenciar esta partida  (SELEÇÃO …, 2015). Tal esforço foi uma clara propaganda política promovida pelo exército brasileiro para que houvesse uma maior aceitação popular de seus soldados e equipamentos, com a intenção de promover certa associação dos combatentes com os jogadores da seleção brasileira. Deste modo, há uma clara percepção do soft power (iv) exercido pelo governo à época, por meio de seus jogadores, na influência que estes realizaram sobre a população haitiana e os resultados encontrados.

Além disso, é possível perceber neste esporte seu potencial valor social, ao orientar os indivíduos a seguir regras e ter disciplina assim como seus praticantes profissionais (COMO…, 2023), assim como no senso de pertencimento, tão importante para a socialização, ao participar de uma time ou mesmo torcer por um (ibidem). 

Considerações finais

Após análise da situação na qual se encontravam os países estudados, é possível perceber que ambos possuem divergências políticas e ideológicas que foram a causa do encerramento das atividades diplomáticas entre estes. Essa ação foi perceptível não apenas por seus respectivos governos, mas também por sua população, ao ter o acesso aos territórios iraniano e saudita mais restrito. Esta limitação foi prejudicial aos espectadores globais, ao tornar tanto os jogadores e sua comissão técnica, independentemente de eles serem ou não nacionais de outros Estados, personas non gratas, apenas pelo fato de trabalharem em empresas sediadas no Irã, e de capital iraniano ou saudita. Deste modo, a recuperação da relação entre estes países aponta a necessidade de um mundo multilateral, para que todos os indivíduos tenham a possibilidade de circular entre diferentes regiões a fim de experienciar situações e eventos, como uma partida de futebol.

Este esporte, tão importante para diferentes sociedades, que às vezes reforçam suas identidades nacionais em suas seleções, comprova sua importância e atuação no Sistema Internacional. Ao ser usado como uma ferramenta diplomática na reaproximação destes Estados, ou como instrumento para a promoção de um mundo mais livre e solidário, o futebol apresenta interessante potencial como um soft power.

Referências

APÓS dois anos de plano antirracismo, jogadores da Premier League voltarão a se ajoelhar. GE, Londres, 9 fev. 2023. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-ingles/noticia/2023/02/09/apos-dois-anos-de-plano-antirracismo-jogadores-da-premier-league-voltarao-a-se-ajoelhar.ghtml&gt;. Acesso em: 26 abr. 2024.

BAUGH, L. Sue. Proxy war. Britannica, [S.l], 15 mar. 2024. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/proxy-war&gt;. Acesso em: 26 abr. 2024.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Especial Forças Armadas  – Missão de estabilização do Haiti, a Minustah (05’23’’). Brasilia, DF: Câmara dos Deputados, 2006. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/radio/programas/269561-especial-forcas-armadas-missao-de-estabilizacao-do-haiti-a-minustah-05-23/>. Acesso em: 21 abr. 2024.

COMO os valores do esporte contribuem para o desenvolvimento profissional. SESI, [S.l], 26 jul. 2023. Disponível em: <https://www.sesirs.org.br/blog-sesi-saude/como-os-valores-do-esporte-contribuem-para-o-desenvolvimento-profissional&gt;. Acesso em: 01 mai. 2024.

‘HISTORIC’ agreement between Riyadh, Tehran will see Ronaldo play in Iran. Middle East Monitor, [S.l], 5 set. 2023. Disponível em: <https://www.middleeastmonitor.com/20230905-historic-agreement-between-a-tehran-will-see-ronaldo-play-in-iran/&gt;. Acesso em: 21 abr. 2024.

IRÃ e Arábia Saudita retomam as relações após 7 anos. Uol, [S.l], 06 abr. 2023. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2023/04/06/ira-e-arabia-saudita-se-comprometem-com-seguranca-e-estabilidade-no-oriente-medio.htm&gt;. Acesso em: 21 abr. 2024.

NYE, Joseph. Soft power. Public Affairs, Nova York, 2004.

MARCUS, Jonathan. 5 perguntas para entender a rivalidade entre Irã e Arábia Saudita. BBC News Brasil, [S.l], 18 set. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49722711&gt;. Acesso em: 21 abr. 2024.

PERSONA non grata. In: Dicionário de Cambridge [S.l], 20-?. Disponível em: <https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/persona-non-grata>. Acesso em: 21 abr. 2024.

SIMÕES, Rogério. O que foi e como terminou a Primavera Árabe?. BBC NEWS BRASIL, Londres, 20 fev. 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55379502&gt;. Acesso em: 21 abr. 2024.

SELEÇÃO brasileira faz o Jogo da Paz no Haiti. Confederação Brasileira de Futebol, [S.l], 09 out. 2015. Disponível em<https://www.cbf.com.br/selecao-brasileira/torcedor/jogos-inesqueciveis/em-porto-principe&gt;. Acesso em: 21 abr. 2024. 

TURRER, Rodrigo. A Guerra Fria entre Arábia Saudita e Irã. Época, [S.l], 15 jan. 2016. Disponível em: <https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/01/guerra-fria-entre-arabia-saudita-e-ira.html&gt;. Acesso em: 21 abr. 2024.

Notas

(i) A Primavera Arabe foi definida por manifestações, caracterizadas por fortes repressões, na região do Oriente Médio e Norte da África, de cunho popular, que visavam mudanças políticas, para a garantia, por exemplo, de mais direitos (Simões, 2021). 

(ii) Persona non grata é “uma pessoa que não é desejada ou bem-vinda num determinado país, porque é inaceitável para o seu governo” (PERSONA …, 20-?).

(iii) De acordo com um artigo publicado no site da Câmara dos Deputados (2006), a Missão de Estabilização do Haiti, tinha o objetivo de “combater a insegurança no país após a crise que forçou a saída do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, em fevereiro de 2004.Coube ao Brasil a chefia da missão, instalada no mês de junho de 2004, bem como constituir o maior contingente nacional de “boinas azuis” : 1.470 militares, de um total de 6.700, militares de 21 países”.

(iv) Soft Power é definido por Nye (2004, p. 5), como a “habilidade de da aquisição de seus objetivos, por meios que não sejam a coerção” (tradução nossa), tendo como exemplos a música, cinema, esporte, etc.

Esse post foi publicado em Arábia Saudita, Diplomacia Cultural, Futebol, Irã. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário