Estagnação do acordo entre Mercosul e União Europeia e perspectivas para o futuro

Ana Carolina Gonçalves Silva

Ana Letícia Pires Bastos

Resumo

Em setembro de 2023, o presidente paraguaio, Santiago Peña, afirmou que não dará continuidade às negociações entre o Mercosul e a União Europeia (UE) no ano seguinte, quando assumirá a presidência rotativa do bloco latino-americano, mediante a declaração, os debates oficiais sobre o acordo, que estiveram anestesiados até recentemente, voltaram a se intensificar. As rodadas de negociação para estabelecer uma área de livre comércio birregional entre os blocos se iniciaram em 1999, e apenas vinte anos depois, em 2019, as partes chegaram a um acordo, que não chegou a ser ratificado em razão da apresentação de uma carta adicional pela UE que estabelecia restrições ambientais que não foram aceitas pelos países do Mercosul.

Pressões e prazos nas negociações do acordo Mercosul-União Europeia

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conversou ao telefone, na sexta-feira dia 3 de novembro, com o presidente do Governo da Espanha, Pedro Sánchez, eles abordaram a necessidade de acelerar a conclusão do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, devendo haver novas rodadas de negociações ainda no mesmo mês.  Ademais, ambos concordam que a presidência simultânea do Brasil no Mercosul e da Espanha no Conselho Europeu representam oportunidade para que o acordo seja finalizado, já que os dois países mantêm uma relação boa politicamente. O presidente Sánchez demonstrou concordância com a necessidade de acelerar a finalização do acordo e se predispôs a manter novas conversas visando concluir o acordo com brevidade (LULA…,2023).

O presidente brasileiro, voltou a criticar as exigências adicionais colocadas pela União Europeia na área ambiental. Tendo em vista que, no mês de setembro, o Ministério das Relações Exteriores confirmou que o Mercosul enviou à União Europeia sua resposta à carta adicional enviada pelo bloco europeu aos países sul-americanos no contexto das negociações de um acordo de livre comércio entre os dois blocos. A carta adicional, com cobranças ao Mercosul na área ambiental, foi criticada pelo presidente Lula, destacando que o documento contém ameaças de sanções ao Brasil e enfatizando a importância de manter um diálogo construtivo entre parceiros, sem ameaças. O presidente do Brasil e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já afirmaram que buscam concluir o acordo até o final deste ano (MERCOSUL…,2023).

Nesse sentido, o presidente do Paraguai, Santiago Peña, já havia anunciado no dia 25 de setembro que não continuará liderando as negociações do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia após 6 de dezembro, quando o Paraguai assumirá a presidência rotativa do Mercosul, sucedendo o Brasil. Peña transmitiu a responsabilidade de concluir as negociações ao presidente brasileiro Lula, afirmando que se o acordo não for concluído antes de sua presidência, ele buscará acordos comerciais com outras regiões, mencionando a possibilidade de acordos com Singapura e os Emirados Árabes Unidos (MERCOSUL…,2023).

Além disso, o presidente paraguaio enfatizou que, após mais de 20 anos de negociações, é hora de tomar uma decisão sobre o acordo de livre comércio. O ultimato de Peña se soma ao prazo estipulado por Lula em junho, que deu até o final do ano para concluir o acordo Mercosul-União Europeia, afirmando que a aprovação do acordo dependerá de um esforço conjunto até o final de 2023. No entanto, divisões internas no bloco sul-americano têm reduzido as expectativas de que um acordo comercial seja atingido ainda em 2023 e fatores como a eleição para o Parlamento Europeu no ano que vem e a eleição presidencial da Argentina neste ano podem complicar o cenário das negociações (MERCOSUL…,2023).

Histórico das negociações e os entraves para a ratificação

O acordo de Associação Birregional Mercosul-União Europeia é um marco histórico para o comércio exterior, uma vez que, assim como aponta o Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), essa tem potencial para ser maior área de livre comércio do mundo, a qual irá incorporar cerca de um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) global, além de agregar um mercado de 780 milhões de habitantes. Assim, tendo em perspectiva a significância do acordo para o cenário comercial internacional, esse se torna de interesse para as duas partes negociantes, que há mais de 20 anos debatem sobre os termos a serem acordados.

O bloco latino-americano, foi criado em 1991 com o objetivo estabelecer um mercado comum e fortalecer a integração econômica entre os países, e é hoje composto por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – a Venezuela havia sido aceita como membro-pleno em 2012, mas foi suspensa em 2016 em razão da cláusula democrática. Já a União Europeia em sua atual configuração foi criada em 1993, mas suas origens podem ser rastreadas à década de 1950 com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e a Comunidade Econômica Europeia. No presente, o bloco incorpora 27 países e pode ser interpretado como um grande passo para a integração regional europeia, uma vez que perpassa o âmbito econômico e impulsiona a convergência política em agendas diversas (MERCOSUL…, 2023).

Isso posto, a UE se destaca como o principal investidor global, uma vez que o bloco importa cerca de 17% do total de bens e serviços, além de contribuir com 20% do produto da economia global. À vista disso, operando a partir dos pilares de diálogo político, cooperação e livre comércio, é esperado que o acordo traga vantagens significativas, pois contempla a abertura de mercados, assim como sua segurança jurídica e transparência, redução de barreiras não tarifárias, consolidação de boas práticas, a facilitação do comércio e de propriedade intelectual, entre outros benefícios. Mediante a isso, é previsto que após os 15 anos do período de adaptação da implementação do acordo, 90% dos bens comercializados entre os países participantes devem ser isentos de impostos de importação, e nesse contexto, as previsões brasileiras da Secretaria de Comércio Exterior são de que o PIB nacional deve aumentar em US$87,5 bilhões, os investimentos devem ser na ordem de US$113 bilhões e as exportações para a UE deverão representar um lucro de US$100 bilhões para o Brasil (ENTENDA…, 2023).

Desse modo, percebe-se que as vantagens da adesão do acordo são muitas para ambas as partes, e esse se classifica como o tratado mais amplo e complexo já negociado pelo Mercosul. As rodadas de negociações para atingirem a meta comum de estabelecer a área de livre comércio entre os blocos se iniciaram em 1999, no entanto, a fase inicial das reuniões foi suspensa em 2004 após ambos os chefes de Estado e de Governo do Mercosul e da UE considerarem as ofertas insatisfatórias. Posteriormente, os encontros entre as partes foram retomados em 2010 na cúpula Mercosul-UE em Madri e intensificados a partir do ano de 2016, como resultado da vontade política dos líderes, em 2019, 20 anos após o início das rodadas, as negociações foram finalizadas. Após a conclusão, o documento deveria então passar pelo processo de revisão jurídica, para que depois fosse averiguado pelos órgãos nacionais e por fim, ratificada pelos respectivos governos. No entanto, despontaram entraves que impediram a oficialização do acordo em razão de novas exigências impostas pela UE (MERCOSUL/UNIÃO EUROPEIA, 2022).

Em março de 2019, pouco após o fechamento das bases do acordo, a UE, enviou um adendo ao texto no qual novas condições ambientais foram determinadas, principalmente tendo em vista a crise ambiental pela qual o Brasil passou durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Assim, tendo em vista a própria legislação ambiental europeia que proíbe a importação de produtos relacionados ao desmatamento, a side letter apresentada pelo bloco busca prevenir os impactos socioambientais que o aumento do comércio e dos investimentos poderiam vir a causar nos países latino-americanos. Desse modo, o texto prevê penalidades, como sanções e restrições do comércio entre os blocos para aqueles países que não respeitarem o Acordo de Paris – tratado internacional ratificado em 2015 no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas Sobre Mudanças Climáticas – e não reduzirem as emissões de Gases do Efeito Estufa (ENTENDA…, 2023).

Além disso, o bloco europeu, com destaque para a França, apresentou suas preocupações quanto ao uso de diversos pesticidas que são proibidos no continente europeu, quanto ao desequilíbrio entre os direitos trabalhistas das duas regiões e também  às práticas de dumping – comercialização de produtos abaixo do preço de produção para a conquista de mercado. Isso posto, a UE utiliza também o Princípio de Precaução, o qual garante ao bloco o direito de suspender as importações caso haja evidências de que o produto comercializado representa um risco para a saúde dos consumidores europeus. O documento adicional apresentado não foi bem recebido entre os governantes do Mercosul, que o interpretaram como sendo um instrumento de caráter protecionista e desigual. Desse modo, o acordo não avançou à etapa de revisão técnica e jurídica e, portanto não chegou a ser ratificado por nenhuma das partes, assim, as negociações estiverem anestesiadas e não demonstraram avanço até recentemente, visto que somente após o ultimato do presidente paraguaio em setembro desse ano, que governantes voltaram a demonstrar esforços para fecharem um novo acordo até o fim de 2023 (ENTENDA…, 2023; MERCOSUL…, 2019).

Um panorama sobre os desafios e impactos do acordo

As principais preocupações do acordo Mercosul-União Europeia giram em torno de medidas relacionadas à proteção ambiental e compras governamentais. O Brasil, atualmente presidindo o Mercosul, encontra-se em desacordo com a abertura do mercado de compras governamentais para empresas de todos os países dos dois blocos. Na visão do Mercosul, o acordo por um lado abre parcialmente o mercado para seus produtos agrícolas e, por outro, dá acesso a um competidor muito mais poderoso do que as empresas do Mercosul no mercado industrial, além de acabar limitando a capacidade dos governos do bloco fazerem políticas industrial e tecnológica (VEJA POR QUE…,2023).

Um artigo recente da Federação Única dos Petroleiros (AFUP) destaca a preocupação em relação às negociações do acordo Mercosul-União Europeia. A análise enfatiza que as regras em discussão representam sérias ameaças à capacidade de desenvolvimento autônomo do Brasil, indo além de questões ambientais e compras governamentais. Uma das preocupações centrais é a restrição imposta às empresas estatais, que seriam obrigadas a agir estritamente com base em critérios comerciais em suas transações, o que poderia limitar políticas de preços e conteúdo local, bem como decisões de investimento que não se encaixem estritamente em critérios de mercado. Além disso, o acordo já está em negociação há mais de duas décadas, o que demonstra a complexidade do tema e a dificuldade em conciliar os interesses de ambas as partes. As fases do acordo estão conectadas, enquanto as empresas estatais são limitadas em suas ações, o acordo promove uma ampla liberalização tarifária em relação aos bens, incluindo máquinas e equipamentos. Isso pode afetar de forma significativa a indústria nacional, especialmente nos setores de petróleo, gás e energia, prejudicando a criação de empregos e a renda no país (VEJA POR QUE…,2023).

Para além disso, existem outras questões elencadas, que são a ausência de compromisso com os princípios da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no acordo e os benefícios que o agronegócio terá neste tratado comercial com a eliminação de tarifas alfandegárias e com o aumento da quota de produtos que poderão ser exportados à Europa. No entanto, a tendência é de que a expansão do agronegócio aumente o desmatamento de florestas e a degradação de outros biomas, emitindo uma quantidade maior de GEE. Nesse aspecto, os defensores do acordo argumentam que entrará mais tecnologia para investir na rastreabilidade das cadeias, mas com a expansão do agronegócio, pode não haver garantia de sustentabilidade (VEJA POR QUE…,2023).

Outro aspecto relevante diz respeito à influência das multinacionais nas negociações e ao esforço da União Europeia para promover a liberalização dos setores de serviços públicos nos países do Mercosul. Tal medida poderia impactar áreas como os serviços postais, telecomunicações e instituições bancárias. Além disso, a União Europeia busca a eliminação de políticas de compras públicas, o que poderia prejudicar agricultores locais e empresas de pequeno e médio porte, afetando o Produto Interno Bruto (PIB), o papel do Estado e aumentando as preocupações ambientais devido ao enfraquecimento da agricultura familiar. Por outro lado, o acordo está relacionado à necessidade de melhorar a sustentabilidade na produção de commodities agrícolas no Mercosul. No entanto, produtos de empresas que pressionam pela liberação e venda de produtos agroquímicos no Brasil são originários de países europeus. Nesse contexto, as multinacionais europeias surgem como as principais beneficiárias, enquanto a agricultura familiar, as políticas sociais e a capacidade do Estado de implementar políticas públicas ficariam enfraquecidas. Há também preocupações quanto ao impacto sobre as populações rurais e indígenas (REUNIÕES…,2023).

O acordo Mercosul-União Europeia é de amplo espectro e alcança várias dimensões  nacionais dos países envolvidos, não sendo o primeiro acordo do gênero na América Latina. A UE já tem acordos econômico-comerciais com vários países da região, como o Chile e a Colômbia. Pode-se observar que, ao longo dos anos, esses países não testemunharam um progresso significativo em termos de avanço tecnológico, apesar de seus acordos comerciais, além de se firmarem como exportadores de commodities. O Brasil, por outro lado, lidera na região em termos de progresso tecnológico, o que o torna ainda mais vulnerável a um acordo desequilibrado com a União Europeia (REUNIÕES…,2023).

Portanto, mesmo que o assunto seja considerado sensível, em nenhum dos dois encontros presenciais realizados no mês de setembro, os técnicos europeus rejeitaram a negociação. Lula reafirmou a posição de restringir, no acordo, o acesso a compras governamentais, particularmente em função da necessidade de reindustrialização do Brasil e demais países do bloco sul-americano. Vários líderes, tanto do bloco europeu quanto do sul-americano, incluindo o presidente Lula, manifestaram seu interesse em avançar na conclusão desse acordo comercial que está sendo negociado desde 1999. O presidente Penã afirma que é hora de tomar uma decisão sobre o acordo de livre comércio, destacando que o Paraguai está pronto para a integração e é um país aberto ao comércio com quase todos os países do mundo (REUNIÕES…,2023).

Referências

ENTENDA…,2023. Entenda o acordo entre União Europeia e Mercosul que se arrasta há duas décadas. Exame. 04 de julho de 2023. Disponível em: Entenda o acordo entre União Europeia e Mercosul que se arrasta há duas décadas | Exame.Acesso em: 17 de outubro de 2023.

LULA…,2023. Lula discute conclusão do acordo Mercosul-UE com premiê espanhol. Veja. 03 de novembro de 2023. Disponível em:Lula discute conclusão do acordo Mercosul-UE com premiê espanhol | VEJA. Acesso em: 10 de novembro de 2023.

MERCOSUL/UNIÃO EUROPEIA, 2022. Siscomex. 23 de março de 2022. Disponível em: Mercosul/União Europeia — Siscomex (www.gov.br). Acesso em: 17 de outubro de 2023.

MERCOSUL…,2023. Mercosul-União Europeia: ‘Ou Lula fecha acordo agora, ou não haverá’, diz Peña, presidente do Paraguai. G1. 26 de setembro de 2023. Disponível em: Mercosul-União Europeia: ‘Ou Lula fecha acordo agora, ou não haverá’, diz Peña, presidente do Paraguai | Mundo | G1. Acesso em: 19 de outubro de 2023.

MERCOSUL…,2023. Mercosul-União Europeia: um acordo e várias incertezas. Outras Palavras. 03 de junho de 2023. Disponível em: Mercosul-União Europeia: um acordo e várias incertezas – Outras Palavras. Acesso em: 17 de outubro de 2023.

MERCOSUL…,2019. Mercosul: bloco econômico da América do Sul fecha acordo histórico com União Europeia. Uol. 19 de junho de 2019. Disponível em: Mercosul: Bloco econômico da América do Sul fecha acordo histórico com União Europeia (uol.com.br). Acesso em: 22 de outubro de 2023.

REUNIÕES…,2023. Reuniões de Mercosul e União Europeia sinalizam avanços por acordo comercial e conversas técnicas entram em fase final. G1. 05 de outubro de 2023. Disponível em: Reuniões de Mercosul e União Europeia sinalizam avanços por acordo comercial e conversas técnicas entram em fase final | Política | G1. Acesso em: 20 de outubro de 2023.

VEJA POR QUE…,2023. Veja por que tratado de livre comércio entre Mercosul e UE é chamado de acordo da desigualdade. Brasil de Fato. 27 de setembro de 2021. Disponível em: Veja por que tratado de livre comércio entre Mercosul e UE é chamado de acordo da desigualdade. Acesso em: 22 de outubro de 2023.

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