Populismo na Venezuela contemporânea: o autoritarismo nos governos de Chávez e Maduro

Gustavo Parreiras Freitas de Oliveira

Resumo

Este artigo faz parte de uma série composta por três textos que têm por intuito trabalhar o conceito de populismo e analisar a ascensão de governos autocráticos nos países latino-americanos. Seu objetivo é analisar a ascensão do governo de Hugo Chávez após a grande crise do sistema político venezuelano e aprofundar nos fenômenos populistas de sua retórica, analisando o caráter autocrático de sua gestão, e de seu sucessor, Nicolás Maduro. Ademais, o artigo ainda tenta relacionar os impactos s do regime venezuelano sobre o sistema internacional, desde a saída do Mercosul, a imposição de sanções econômicas à Venezuela pelos Estados Unidos.

Introdução

A partir do entendimento sobre a construção de narrativa para eleições de líderes populistas, é possível compreender como a ascensão de uma figura extremamente carismática, normalmente caracterizada por discursos nacionalistas e por um certo desprezo pelas instituições, pode contribuir para a transformação de democracias em regimes autoritários. Alguns casos podem ser ressaltados, em especial na América Latina, onde as populações de diversos países elegeram governantes que, ao longo de sua trajetória no poder, implantaram regimes autocráticos.

Neste contexto, o caso venezuelano se destaca. A tentativa de golpe de Estado no início dos anos 90, seguida pela eleição de Hugo Chávez em 1998, como esperança para saída da crise, não só foi o ponto de partida para a chamada onda rosa – fenômeno que marcou a ascensão de governos de esquerda nos diversos países latino-americanos, na virada do século XXI –, como representou o início do processo de escalada autoritária no país. A partir desse fenômeno se compreende que líderes populistas e regimes autocráticos se estabelecem tanto em governos de direita quanto de esquerda.

Antecedentes

A democracia venezuelana se instaurou a partir da queda da ditadura de Marcos Pérez Jiménez, em 1958. Até os anos 1980, a estabilidade do regime foi garantida devido ao Pacto de Punto Fijo, firmado dentro da constituição da Venezuela em 1961. Em termos gerais, o acordo reconhecia a existência legítima de diversos partidos e de suas grandes discordâncias, no entanto, tinha por princípio a ideia de que todos possuíam um interesse maior na permanência do regime democrático (ROMERO, 1989). Um paralelo com as normas de reciprocidade e as regras não escritas da política estadunidense pode ser traçado para entendimento dessa aliança, em que, independentemente de quem está no poder, o líder deve ser respeitado pelo partido opositor, pois, caso contrário, não será possível fazer política a democracia estaria em risco (ZIBLAT, LEVITSKY, 2018).

O pacto não considerava como legítimo o Partido Comunista, pois era considerado uma ameaça para o regime. Essas três décadas foram regidas por uma disputa entre elites, que firmaram o alicerce econômico do período em uma distribuição clientelista da renda petrolífera, coordenando, assim, a intervenção do Estado nos setores econômicos. Contudo, em 1989, uma crise se instaurou, devido ao declínio dos preços dos barris de petróleo, e o presidente recém-eleito Carlos Andrés Pérez (1989-1993) tentou adotar inúmeras medidas pautadas na lógica neoliberal como resposta à crise econômica, tais como a privatização de empresas estatais e uma redução da máquina pública (VILLA, 2005). A coordenação de Pérez não foi bem recebida pela população, que se revoltou contra o governante. O presidente, por sua vez, reagiu de modo a marcar o início da extrema instabilidade do sistema venezuelano, em um ato de repressão militar ao movimento de revoltas populares denominado Caracazo, que resultou na morte de mais de 276 pessoas segundo dados oficiais, e 379 de acordo com análises extraoficiais (PROVEA, 1989).

A partir de 1989, a Venezuela mergulhou em uma profunda crise. Com isso, Hugo Chávez, que tentou um golpe de Estado sem sucesso no ano de 1992, se aproveitou do enfraquecimento do Pacto de Punto Fuji e de sua boa recepção pela população para se eleger. Sua candidatura se consolidou em torno de um discurso duro contra os partidos tradicionais, pregando a união do povo e afirmando a necessidade de uma mudança radical no sistema político do país. As mudanças propostas o levaram à vitória nas eleições presidenciais de 1998 pelo Movimento V República, com 58% dos votos válidos contra o candidato Henrique Salas Romer Feo, do partido Projeto Venezuela (MATOSO, FOGOLARI, 2021).

O poder Chavista

A trajetória de Chávez se destaca em alguns fatores: por um lado, a falha em sua tentativa de impor um golpe militar, mas, por outro, seu triunfo como líder de um movimento eleitoral popular (LOMBARDI, 2003). Após eleito, convocou em 1999 eleições para formação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte (ANC), cujo objetivo era alterar a constituição vigente desde 1961. Nela, os apoiadores chavistas ocuparam a maior parte das cadeiras, totalizando 125 deputados das 131 cadeiras. A nova constituição trouxe mudanças principalmente para o Judiciário, que foi extremamente politizado e aparelhado por Hugo Chávez. O novo texto também ampliou os poderes do Presidente e transformou as organizações militares, que antes se mantinham neutras e eram utilizadas como meio para defesa e segurança da população e do Estado, em uma organização praticamente política, que possui voz em assuntos sociais e econômicos que competem ao governo federal. Esse movimento expressa uma mudança nas regras do jogo durante seu mandato, na tentativa de legitimar seu autoritarismo (MIRANDA, 2014).

A ascensão de um líder populista se deu, em parte, devido à fragilidade em que o sistema político venezuelano se encontrava. Em meio à crise econômica e instabilidade política muito severa, foi possível o crescimento da figura de Hugo Chávez. Entretanto, grande parte das políticas sociais feitas a partir de sua eleição, chamadas de misiones, procuravam reparar os problemas do país, por meio das forças armadas, como operações para resolução de crises. Ademais, essas tarefas, que deveriam ter um caráter transitório, já passaram a ser meios para coerção da população após mais de 15 anos de regime chavista. (SANJUAN, 2007).

Toda a retórica populista utilizada por Hugo Chávez tem conexão direta com sua iniciativa autocrática. De acordo com Levitsky e Ziblatt (2018) são alguns sinais de um líder autoritário: “(i) A rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas), (ii) Negação da legitimidade dos oponentes políticos, (iii) Tolerância ou encorajamento à violência e (iv) Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia” (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 33-34). O início do primeiro mandato de Chávez deixou em evidência os sinais de autoritarismo. O aparelhamento do Judiciário e a alteração da Constituição refletem a falta de compromisso com as regras democráticas. Da mesma forma, a politização e o posicionamento estratégico de militares, a fim de coordenar uma repressão a opositores do governo, caso fosse necessário, e o maior controle estatal sobre os meios midiáticos no país também são indícios da postura autoritária do governo Chávez.

Após a morte de Chávez, em 5 de março de 2013, seu sucessor e vice, Nicolás Maduro, assumiu a Presidência. Como seu primeiro ato, convocou novas eleições, das quais saiu vitorioso, inaugurando uma nova fase do regime venezuelano e acentuando a crise política. A falta de carisma por parte de Maduro o levou a adotar um caráter ainda mais autoritário e rígido, silenciando a oposição, que representava 41% do Parlamento em 2013 (BASTOS, OBREGÓN, 2018). A tentativa de continuar a proposta chavista com Maduro não foi bem-sucedida, visto que não possuía uma base política tão bem consolidada, além dele não ser um líder carismático. Um grande exemplo do carinho e admiração da população com Chaves foi o acompanhamento presencial de mais de dois milhões de pessoas em seu velório.

Ademais, uma crise econômica se instaurou em 2014, após a queda do preço do barril de petróleo, levando a população a uma grande insatisfação em relação ao governo de Maduro, e uma resposta ainda mais autocrática por parte dele para se manter no poder.

A Venezuela internacionalmente

Apesar de ter instaurado medidas autocráticas, a Venezuela integrou, por meio da decisão do Conselho do Mercado Comum (CMC) 27/12, o Mercosul, como Estado parte, e participou de alguns processos de desenvolvimento social (OAS, 2012). No entanto, a partir do seguimento dado por Nicolás Maduro, com medidas próximas às ditatoriais, silenciamento e perseguição da oposição, foi extremamente mal recebido pelos países do sistema internacional. Em 2017, por meio de uma decisão conjunta dos Estados-membros do Mercosul, a Venezuela foi suspensa do bloco por descumprimento do Protocolo de Ushuaia, que diz respeito ao compromisso democrático dos países pertencentes à organização (Mercosur, 2017). Para além disso, a Alternativa Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), iniciativa criada pela Venezuela em parceria com Cuba, em 2004, e principal instrumento de projeção regional do país, perdeu forças após a queda dos preços do petróleo e a morte de Hugo Chávez em 2013. Hoje a organização não tem perspectivas de crescer novamente e se encontra sem liderança e sem relevância internacional (LAFUENTE, 2014).

O Estado venezuelano sofre de uma grande repressão internacional, coordenada pelos Estados Unidos da América, impactando diretamente no agravamento da crise econômica presente no país. As sanções econômicas impostas pelos EUA afetam agressivamente o país, que perde grandes oportunidades comerciais. Em janeiro de 2019, Juan Guaidó, líder da oposição ao governo e presidente do Congresso Nacional, autoproclamou-se presidente interino do país, agravando ainda mais o clima de tensão política no país. Guaidó foi reconhecido por diversas nações, e dentre elas, os Estado Unidos, que forneceram ao oposicionista o acesso a contas oficiais venezuelanas dentro da Federal Reserve Bank, em Nova York, além de outras contas em bancos assegurados americanos (BBC, 2019)

Desde a ascensão de Maduro, as tensões dentro do país se agravam, sendo que a guerra contra a fome e o aumento no índice de mortalidade da população geral ainda seguem muito presentes. Desde 2017, o país sofre os efeitos da hiperinflação, com a desvalorização rápida da moeda e mudanças diárias nos preços dos bens de consumo. Somente no ano de 2020 a inflação chegou a crescer 2000%, atingindo patamares nunca antes vistos e desencadeando na introdução da nota de um milhão de bolívares venezuelanos. Essa é a maior moeda já emitida na história do Estado, no entanto, seu valor em dólares é ínfimo: 25 centavos da moeda estadunidense (D’OLMO, 2021). Os conflitos internos e manifestações contra o atual mandatário estão cada vez piores, juntamente com a pressão internacional que sofre o país, que segue sem qualquer tipo de previsão ou plano para resolver as crises que o atingem.

Ademais, existem grupos dentro do país que se encontram em situações ainda piores. Um exemplo é o caso das tribos indígenas Warao. Além de atingidos pela crise econômica, seus membros encontram-se desamparados pelo Estado durante a pandemia do covid-19, sem saneamento básico e nenhum tipo de recurso para combate do vírus de maneira eficaz. Muitos já buscam asilo em outros Estados, em especial no Brasil, que até o momento, já abriga mais de três mil indígenas (ACNUR, 2020).

Considerações finais

O compromisso dos atores políticos com a democracia é extremamente importante para a vigência das instituições democráticas em um país. Hugo Chávez se ergueu por meio de uma retórica populista, pregando a união da nação como um todo e uma luta contra o sistema, obtendo a vitória das eleições presidenciais em 1998. No entanto, ainda que eleito de forma constitucional, alterou as regras do jogo durante seu mandato, que tomou um caráter autocrático. Essa retórica populista está presente em diversos governos da América Latina, e deve-se estar atento a todos os sinais que um líder autoritário pode apresentar, como explicitado por Levitsky e Ziblatt em sua obra Como as democracias morrem.

Referências

MATOSO, Mateus; FOGOLARI, José. populismo na construção de uma política externa integrativa: o caso da Venezuela de Hugo Chávez (1999-2013). Conjuntura Austral. Vl2 nº58. jun. de 2021

MIRANDA, José. Populismo, Democracia e a Constituição na Venezuela. Revista Direito, Estado e Sociedade. Porto Alegre. Disponível em:http://direitoestadosociedade.jur.puc-rio.br/media/45artigo2.pdf. Acesso em 14 de jun. de 2021

PROVEA. Informe de situación de derechos humanos en Venezuela (octubre de 1988-septiembre de 1989): informe anual. Caracas: Provea, 1989. 108 p.

ROMERO, Aníbal. “Situación y perspectivas del sistema político venezolano”. Em Manuel Vicente Magallanes (org.) Sistema político venezolano, clubes franceses y tendencias electorales Caracas, Consejo Supremo Electoral, 1989.

SANJUAN, Ana Maria. Claros-escuros bolivarianos. Le Monde Diplomatique– Brasil, São Paulo, n. 3, pp. 10-12, 2007.

VILLA, Rafael. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. Scielo. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/Mw5r8NkmHmf5gMwGQfgwg3S/?lang=pt. Acesso em 14 de jun. de 2021

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