O genocídio da Estrela da Manhã: a violência colonial da Indonésia em Papua Ocidental

Bruno Lima dos Santos
Camila Juliana de Almeida Bueno

Resumo

No início de 2024, generais indonésios vieram a público pedir desculpas após a divulgação de imagens de um homem papuásio sendo torturado por militares na província de Papua Ocidental. As imagens reafirmam o histórico de violações de direitos humanos perpetradas pela Indonésia sobre a população papuásia, a repressão ao movimento de independência e o silenciamento da condição de Papua Ocidental pela Indonésia. O presente artigo visa explorar a constante violência sobre os papuásios-indonésios e a omissão internacional sobre a condição de Papua Ocidental no pacífico sul.

A sistematização da violência colonial em Papua Ocidental

Em fevereiro deste ano, foram divulgados vídeos e fotografias das forças armadas da Indonésia torturando um cidadão de Papua Ocidental. Os registros revelaram o abuso total de poder dos militares durante uma operação em Omukia e Gome na província da Papua Central. O homem abordado e desarmado, foi imobilizado em um barril com água e espancado por horas pelos soldados, sem chances de qualquer reação. Após a divulgação, o comandante do exército, Izak Pangemanan, pediu desculpa à população papuásia e confirmou que as investigações sobre o caso já estariam em curso e que 13 militares teriam sido detidos. Além da condenação do ato, o major-general declarou que o evento não representava a realidade das forças armadas e enfatizou que a ação teria sido cometida por indivíduos desonestos, e que esses estariam manchando a reputação dos militares. 

O pedido de desculpas feito pelo alto escalão do exército é um episódio raro diante das diversas acusações sobre as violações de direitos. No entanto, ao contrário das declarações do comandante, as ações das forças armadas dessa natureza no território papuásio não são de caráter único. Benny Wenda, líder exilado da Papua Ocidental, disse que apesar das imagens serem brutais e chocantes, “apenas expõem como a Indonésia se comporta todos os dias” na Papua Ocidental. Além de Wenda, Menase Tabuni, presidente executivo do Movimento Unido de Libertação da Papua Ocidental (ULMWP)[i], condenou os ataques e a violência indiscriminada dos militares. No mais, suscitou que o país carece de ajuda internacional, principalmente de uma atuação mais ativa do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. De acordo com Tabuni, é preciso “formar imediatamente uma equipe de investigação para realizar investigações sobre violações dos direitos humanos e ameaças de genocídio contra o povo da Papua”.

Nesse contexto, sem a intervenção de outros atores, os abusos de poder devem permanecer. Além disso, há um receio de que o genocídio lento da população papuásia seja acentuado e acelerado com a entrada do novo presidente eleito da Indonésia, Prabowo Subianto, que tomára posse em outubro desse ano. De acordo com Usman Hamid, diretor-executivo da Amnistia Internacional Indonésia, o “inverno” estaria chegando para a perpetração da violação dos direitos humanos em Papua Ocidental, já que o novo líder, Subianto, tem um passado marcado por denúncias de violações de direitos humanos envolvendo torturas, desaparecimentos e assassinatos no Timor-Leste e Papua Ocidental, como general das forças armadas na década de 1980. No mais, no período eleitoral, Subianto recusou-se a participar de eventos e questionamentos sobre a liberdade de imprensa e garantia dos direitos da população, questionados pela Human Rights Watch.

O “Ato de Livre Escolha” na perpetuação da violação de direitos humanos em Papua Ocidental

Papua Ocidental está na metade ocidental da ilha de Papua, também conhecida como ilha da Nova Guiné e a sua população é composta por povos indígenas, que outrora estiveram sob domínio da Holanda até o ano de 1961. Neste mesmo ano, os papuásios declararam a independência, através de um Congresso, e hastearam a sua nova bandeira – a Estrela da Manhã. Entretanto, a emancipação foi efêmera, já que poucos meses depois os militares indonésios invadiram o território. Nesse contexto, um conflito pelo domínio do país foi instaurado entre os nativos, a Indonésia e os Países Baixos. Assim, diante da deflagração da disputa, os indonésios pressionaram fortemente a Holanda para que entregasse a região. 

Um dos principais motivos para a insistência do governo indonésio pelo controle da ilha de Papua, é a abundância de recursos disponíveis no território, contendo enormes reservas de petróleo, gás, cobre, ouro e madeira. Em 1963, um cessar-fogo foi mediado pela ONU e em seguida uma votação foi realizada para a população decidir se haveria integração ou não com a Indonésia. A solução formalizada através do Ato de Livre Escolha, aprovado pela ONU, em 1969. No entanto, a votação é considerada ilegítima, pois a Indonésia interferiu no processo selecionando meticulosamente mil papuásios a favor da Indonésia para serem os representantes que votariam sobre a integração dos países. A resolução da ONU que legitimou a ocupação da Indonésia na Papua Ocidental, ilustra a ineficácia do conselho de tutela na garantia da estabilidade, da liberdade e dos direitos humanos no processo de descolonização.

resistência ao colonialismo indonésio começou nos primeiros dias de ocupação nos anos 70 pelo grupo guerrilheiro armado Movimento Papua Livre (OPM). Nesse período, o governo da Indonésia estava sob o comando do ditador Hadji Mohamed Suharto (1967-1998), que permaneceu no poder por 31 anos. Durante seu regime, as forças armadas da Indonésia foram acusadas durante décadas de violações de direitos humanos e, também, de serem responsáveis diretamente por 500 mil mortes dos povos de Papua. Vale ressaltar que, ao mesmo tempo, a Indonésia mantinha parte dos seus militares na ocupação do Timor-Leste (1975-2002) e estima-se que até o fim do conflito, cerca de um terço da população foi morta durante a incursão. Com a renúncia de Suharto, em 1998, o movimento de emancipação da Papua Ocidental ganhou espaço para novamente lutar pela independência, assim nesse período uma nova consulta pública foi realizada rejeitando o Ato de Livre Escolha. Mas em 2004, a Indonésia avançou na região colocando os chefes das forças armadas que foram responsáveis pelo massacre no Timor-Leste (1991)[ii] nas operações de controle da Papua Ocidental.

Como dito anteriormente, a violação de direitos humanos ocorre desde o primeiro dia de ocupação dos militares indonésios na Papua Ocidental, mas com o decorrer das décadas a violência está cada vez mais indiscriminada, em que, há a sistematização da tortura, do estupro e dos assassinatos de civis, que incluem crianças e mulheres, por militares. Os relatos dos cidadãos perpassam pela questão da fome, acentuada pela destruição de colheitas pelas forças armadas da Indonésia, e até mesmo pelo sentimento de estarem sendo “caçados como animais”. Segundo a ativista dos direitos humanos da região, Raga Kogeya, a população de Papua está sendo “desumanizada”. 

Além disso, a Indonésia controla todo o acesso de informação e restringe a presença de jornalistas estrangeiros e observadores de direitos humanos. Por outro lado, há também a radicalização dos grupos de libertação do país, como o Exército de Libertação da Papua Ocidental, que em fevereiro de 2023 sequestrou um piloto militar neozelandês, que segue como refém. No contexto atual, o  novo presidente eleito da Indonésia, Prabowo Subianto, não somente deve seguir o legado de repressão de Joko Widodo, atual presidente ultra popular da Indonésia, mas também intensificá-lo devido a sua postura contra a garantia dos direitos humanos, demonstrada anteriormente nos cargos de Ministro da Defesa e de general no conflito do Timor-Leste.

O silêncio internacional sobre Papua Ocidental e sua instrumentalização pela Indonésia

Em 2022, o governo de Joko Widodo venceu uma disputa política acerca da “Lei Omnibus” para promoção do desenvolvimento e atração de investimentos para a Indonésia. A lei foi duramente criticada por enfraquecer a proteção dos trabalhadores e do meio ambiente. Sua implementação em Papua Ocidental tem sido associada ao grande aumentodo desmatamento e do deslocamento de milhares de pessoas para abrir caminho para novos projetos de infraestrutura que devem abrigar novos campos de produção de óleo de palma e mineração na ilha. A lei vem em conjunto com um projeto para criar três novas províncias, subdividindo as duas províncias mais escassamente povoadas de Papua Ocidental. O plano pretende facilitar o acesso de empresas estrangeiras na região pela redistribuição de terras e seus administradores, além de aumentar a presença militar para reprimir os grupos de resistência.

Os planos implementados pelo governo Widodo, que Subianto pretende dar continuidade, continuam marginalizar os povos indígenas papuásios em sua própria terra e agravar os conflitos com colonos indonésios que buscam os recursos naturais da ilha. Devido à exploração em grande escala da riqueza natural em Papua Ocidental, os papuásios têm perdido acesso às florestas, montanhas e rios essenciais para o modo de vida do seu povo. Segundo o relatório de 2022 da Human Rights Monitor, já são mais de 60 mil pessoas deslocadas internamente pelos conflitos militares e pela atividade econômica, o que tem intensificado as denúncias de violações de direitos humanos contra papuásios pela população indonésia presente na ilha. Nesse cenário, muitos papuásios atravessam a fronteira e buscam refúgio nas terras altas de Papua-Nova Guiné, o que, consequentemente, tem agravado os conflitos tribais e as disputas entre as populações indígenas no país.

Apesar de pertencer ao mesmo grupo étnico, Papua-Nova Guiné vem priorizando relações amistosas com Jacarta frente ao movimento de independência em Papua Ocidental. Em fevereiro de 2024, Indonésia e Papua-Nova Guiné ratificaram um novo acordo de segurança que promete fortalecer a fronteira entre os dois países e “pacificar” os conflitos tribais nas terras altas da ilha. O Movimento de Libertação tem buscado reconhecimento além da ilha de Papua, e o movimento vem pressionando seu reconhecimento pelo Grupo Ponta de Lança da Melanésia (MSG)[iii], que foi criado com o propósito de lutar pela autodeterminação dos povos melanésios na região. Mas o MSG vem buscando formas de contornar o reconhecimento da luta de independência papuásia, sendo desenvolvidas novas diretrizes para adesão e até uma moratória suspendendo pedidos de adesão por um ano, priorizando um relacionamento amistoso com a Indonésia.

A posição regional acerca do movimento de independência em Papua Ocidental segue sendo negligenciada, como se verifica nos posicionamentos de Austrália e Nova Zelândia. O governo australiano se apoia no Tratado de Lombok de 2006 para não se manifestar a respeito do tema, tratado este que estabeleceu que haja respeito mútuo pela soberania entre Austrália e Indonésia e não interferência em assuntos internos. O tratado surgiu após uma disputa diplomática no qual a Austrália aceitou 43 requerentes de asilo de Papua Ocidental, o que levou a Indonésia a retirar o seu embaixador de Camberra. Nesse sentido, a Nova Zelândia segue a posição australiana em negligenciar a gravidade do conflito cooperando militarmente com o governo indonésio, o que foi colocado como motivação pelo movimento de independência para o sequestro do piloto neozelandês, Phillip Mehrtens, em março de 2023.

Simultaneamente existe uma corrida diplomática pelo pacífico sul, já que a China vem ampliando sua presença nos países insulares do pacífico. Em 1971 todos os 14 países que compõem o Fórum das Ilhas do Pacífico (PIF)[iv]reconheciam a independência de Taiwan, hoje somente quatro países insulares – Palau, Tuvalu, Nauru e as Ilhas Marshall – reconhecem Taiwan em detrimento da China. Os EUA reabriram sua embaixada nas Ilhas Salomão e firmaram um novo pacto de segurança com Papua-Nova Guiné pelo aumento da presença chinesa na região. Nesse cenário, a Indonésia também faz parte da corrida na tentativa de garantir uma posição de destaque regional, utilizando-se do potencial econômico mineral e agrícola de Papua Ocidental para se aproximar das economias regionais. Além disso, a Indonésia vem usando a identidade papuásia para se aproximar da identidade melanésia dos pequenos países insulares do pacífico. Ao mesmo tempo, reprime a identidade papuásia na ilha, violando direitos humanos nas comunidades tradicionais e reprimindo violentamente o movimento de independência de Papua Ocidental.

Notas de fim

[i] O Movimento Unido de Libertação da Papua Ocidental (United Liberation Movement for West Papua – ULMWP) une os três principais movimentos de independência política que procuram a independência da Nova Guiné Ocidental (Papua Ocidental) da Indonésia sob uma única organização guarda-chuva. A ULMWP foi formada em 7 de dezembro de 2014 em Vanuatu, unindo a República Federal da Papua Ocidental (Federal Republic of West Papua – NRFPB), a Coligação Nacional para a Libertação da Papua Ocidental (West Papua National Coalition for Liberation – WPNCL) e o Parlamento Nacional da Papua Ocidental (National Parliament of West Papua – NPWP).

[ii]  O massacre aconteceu em 12 de novembro de 1991, em que durante uma procissão vários jovens começaram a levantar faixas e a proferir gritos de ordem em alusão a um Timor-Leste livre e independente. Aproximadamente 300 pessoas foram mortas a tiros pela polícia indonésia.

[iii] O Grupo de Ponta de Lança da Melanésia (Melanesian Spearhead Group – MSG) é uma organização intergovernamental, composta pelos quatro estados melanésios de Fiji, Papua-Nova Guiné, Ilhas Salomão e Vanuatu, e pela Frente Kanak e Socialista de Libertação Nacional da Nova Caledônia.

[iv] O Fórum das Ilhas do Pacífico (Pacific Islands Forum – PIF) é uma organização intergovernamental que visa melhorar a cooperação entre os países e territórios da Oceania, incluindo a formação de um bloco comercial e operações regionais de manutenção da paz. Seus membros são Austrália, Kiribati, Nova Caledônia, Papua-Nova Guiné, Tuvalu, Ilhas Cook, Ilhas Marshall, Nova Zelândia, Samoa, Vanuatu, Fiji, Micronésia, Niue, Ilhas Salomão, Polinésia Francesa, Nauru, Palau e Tonga.

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