Dois anos de guerra aberta na Ucrânia: o impasse no front e o desgaste no Ocidente

Joana de Castro Pinelli
Júlio Lima Pinto de Souza

Resumo

Após meses de concentração de tropas russas nas áreas fronteiriças da Ucrânia, o conflito que se alastrava desde 2014 se expandiu em fevereiro de 2022, quando a Rússia lançou uma invasão em território ucraniano. E, após dois anos de guerra aberta, o conflito agora parece ter chegado a um impasse, apesar da resiliência ucraniana em sua difícil luta para conter a abordagem intervencionista promovida pelo Kremlin. Assim, este artigo tem como finalidade repercutir acontecimentos recentes sobre a guerra e seu impacto na comunidade internacional.

A invasão que perdura até os dias de hoje

No dia 24 de fevereiro de 2022, o presidente russo, Vladimir Putin, autorizou uma “operação militar especial” na Ucrânia. O estopim da guerra ocorreu dias antes quando o governante russo reconheceu duas províncias separatistas como independentes, Luhansk e Donetsk, e ordenou o envio do que chamou de forças de manutenção da paz, uma medida que o Ocidente caracterizou como o início de uma invasão. Em um pronunciamento, Putin destacou o objetivo de “desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia”, sem intenção de ocupar o território ucraniano e advertiu que terá uma resposta “imediata” contra qualquer interferência.

Por outro lado, em um vídeo divulgado em suas redes sociais, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, eleito em 2019 com um discurso favorável ao ocidente, anunciou a imposição da lei marcial[i] no país e disse à população que mantenha a tranquilidade. Ademais, a reação da comunidade internacional foi imediata, como a imposição de fortes sanções a Moscou e um amplo apoio internacional à Ucrânia em termos militares e em condenações por parte de organizações globais.

Após a invasão, o porta-voz do Kremlin [ii], Dmitry Peskov, declarou que a Rússia só interromperá os ataques se suas “exigências” forem atendidas. Entre as demandas estão a alteração da Constituição ucraniana para garantir neutralidade em relação à adesão em blocos, como a União Europeia (UE) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o reconhecimento da Crimeia como parte da Rússia e a aceitação das repúblicas separatistas previamente mencionadas como territórios independentes. 

A península da Crimeia é uma região estrategicamente importante devido a sua localização geográfica, que oferece um ponto de acesso ao Mar Negro e é um elemento essencial para entender a dinâmica do confito. Nesse contexto, após a dissolução da União Soviética em 1991, a Crimeia tornou-se parte da Ucrânia, mas a Rússia manteve sua presença militar em Sevastopol, a maior cidade na península, através de um acordo de aluguel. A presença russa, resultou, posteriormente, no Acordo de Kharkiv em 2010, quando Kiev concordou em estender a locação da base naval russa em Sevastopol até 2042, já que a cidade é a base principal da Frota do Mar Negro da Rússia e tem sido historicamente uma base naval fundamental para Moscou. Dessa forma, desde que a Crimeia foi anexada, a península tornou-se um ponto de conflito, uma vez que, as nações europeias e os Estados Unidos reconhecem a Crimeia como parte do território ucraniano e Putin insiste que a península é território pertencente à Rússia. 

Em 1991, com o fim da Guerra Fria, observou-se também a OTAN ganhando novos integrantes, incluindo países que faziam parte da antiga União Soviética, como os países bálticos que aderiram à aliança em 2004. O principal objetivo atualmente da aliança militar seria conter a expansão russa no Leste Europeu e, recentemente, foi formalizada a adesão da Finlândia em 2023 e a da Suécia em 2024. Enquanto isso, Moscou observava uma crescente aproximação do governo de Kiev com a OTAN que poderia trazer maiores conflitos entre os países, argumentando que a adesão da Ucrânia e dos países nórdicos à aliança militar “ameaçaria a segurança da Rússia”, dando motivo para uma resposta simétrica. Dessa maneira, a expansão da OTAN representa uma significativa transformação no sistema de segurança europeia em décadas, resultando na presença iminente de tropas ocidentais próximas da fronteira russa.

Os atuais desdobramentos do conflito e as percepções russas e ucranianas frente à guerra

Desde a invasão em fevereiro de 2022, o Conselho de Segurança  da Organização das Nações Unidas (ONU) tem realizado diversas reuniões para discutir a situação em questão, durante as quais propostas de resolução foram apresentadas por diversos países, como os Estados Unidos e o Reino Unido. Essas propostas refletem, muitas vezes, perspectivas alinhadas com seus interesses ocidentais e, por isso, como membro permanente do Conselho de Segurança, a Rússia exerce seu poder de veto. Por outro lado, o governo russo também também submeteu suas próprias propostas de resolução, mas foram rejeitadas por causa da oposição de outros membros permanentes ou pela falta de consenso no Conselho.

Agora, após dois longos anos de conflito aberto com sua vizinha, em adição aos oito anos da guerra civil iniciada em 2014 (Guerra no Donbass [iii]), a Ucrânia se encontra em uma posição bastante difícil. Dois de seus maiores problemas atualmente são a falta de munição e de pessoal. Problemas os quais têm respondido, respectivamente, com medidas drásticas e draconianas. Todo seu território foi afetado, seja por deslocamento interno ou pelos constantes ataques de mísseis, drones e aeronaves feitos pela Rússia. Além disso, sua economia se tornou dependente da assistência internacional e suas forças armadas estão à mercê das disputas internas do congresso norte-americano, que de tempos em tempos decide aprovar mais ajuda militar após extensas discussões entre republicanos e democratas, unidos na propagação do imperialismo norte-americano, mas que discordam sobre como isso deve ser feito.

Sua tão antecipada contra-ofensiva de 2023 fracassou devido, dentre vários motivos, ao vacilante apoio Ocidental e a incapacidade de superar as fortificações russas no extenso front oriental do país, resultando em trocas no alto escalão de seu comando militar. Com isso, a Ucrânia optou por confiar cada vez mais na estratégia de sabotagem e ataques direcionados a alvos importantes, como navios e aeroportos, mas também a infraestrutura inimiga como demonstrado pelos casos da ponte de Kerch e na Sibéria, assim como pela suspeita de envolvimento no ataque ao Nord Stream 2.

No entanto, esses atos não têm sido suficientes para melhorar a situação atual no front de maneira perceptível, onde a Rússia tem feito avanços ainda que pequenos. Outra dificuldade encontrada pela Ucrânia atualmente é a de manter sua causa relevante perante o imaginário do público agora que outro conflito ocupou a limitada atenção ocidental e seu maior financiador, os EUA, está dando prioridade à seu mais importante aliado, Israel, para garantir que sua base permanente do Oriente Médio possa continuar intocada em seu projeto de lebensraum [iv]. Mas o cada vez mais impopular governo de Zelensky promete continuar a luta, contrariando uma parcela crescente de sua população, contanto que o Ocidente continue enviando armamentos. Quadro que supostamente pode se alterar de acordo com os resultados da próxima eleição presidencial nos EUA, em novembro de 2024, pois o apoio inquestionável da administração Joe Biden pode acabar caso seu governo não consiga reeleição e Donald Trump, seu grande oponente, prometeu pôr um fim à guerra se for eleito, apesar de não fornecer explicações detalhadas sobre como fará isso.

Já a Rússia, após sofrer catastróficas baixas durante as primeiras semanas da invasão e abortar completamente a missão de decapitação [v] do comando ucraniano em Kiev, reorganizou seus exércitos e adotou uma “nova” estratégia ao final de 2022, a de atrito. Realocando suas tropas e solidificando suas posições nas regiões ocupadas do leste e sul da Ucrânia, o campo de batalha atual se tornou algo remanescente dos da Primeira Guerra Mundial, perfeitos para a aplicação de táticas de “moedores de carne” onde a classe trabalhadora de um país mata a de outro [vi]. 

Dessa forma, as forças russas conseguiram absorver o impacto do apoio bélico ocidental jogado pela Ucrânia, ao custo de combates excruciantes e uma alternância entre constante bombardeamento ou periódicos ataques por mísseis e drones direcionados, criando uma atmosfera de perigo permanente. E nesse quesito, a Rússia passou a compartilhar de experiências já familiares para a Ucrânia, pois ataques dentro de seu território não são mais eventos singulares. Agora, a Rússia sofre com incursões dentro de sua fronteira, algumas delas realizadas por grupos russos anti-Putin, outras realizadas por drones direcionados à infraestrutura.

Apesar disso tudo, a Rússia não aparenta estar derrotada e tem feito recentes avanços em território ucraniano. Ela de fato não se encontra em uma posição confortável ou completamente segura, como demonstram as situações de compra de munições norte-coreanas, crescente dependência econômica chinesa ou o fato de sua invasão ser a causa direta da última onda expansionista da OTAN, mas a Rússia também não teve sua indústria demolida ou se quer foi isolada pelas sanções ocidentais, nem foi induzida a uma tão esperada mudança de regime, como demonstrado pela reeleição de Putin que, mesmo sendo extremamente questionável, aponta para a existência de uma base sólida de apoio ao titular.

O desgaste do conflito e as movimentações internacionais

Um questionamento importante é levantado após esses dois anos de guerra aberta: o Ocidente estaria abandonando a Ucrânia? Segundo nossa análise, a resposta é: ainda não. Contudo, essa pergunta necessita de um pouco mais de elaboração. É inegável que o apoio quase unânime que foi demonstrado dentro do Ocidente durante o período inicial pós invasão de 2022 não existe mais. No entanto, é também inegável que o apoio à Ucrânia persiste não apenas no noticiário mainstream, mas também nas ações dos governos ocidentais, apesar desse atual apoio passar por diversas crises como o desgaste político ligado ao conflitoprotestos de fazendeirosaumento do custo de vida europeu e cada vez maiores discussões sobre o envio de ajuda militar.

Percebemos que o capital internacional ocidental já investiu demais na neocolonização da Ucrânia para simplesmente abandoná-la por completo e ele espera recolher seus retornos, mesmo que tenha que cobrá-los de um país devastado. Além disso, esse conflito tem se mostrado uma excelente fonte de renda para os complexos industriais militares ocidentais, especialmente o norte-americano, profissionais na prática de war profiteering [vii] e que, em adição ao fornecimento à Ucrânia, também garantiram contratos militares para a renovação do aparato bélico dos países europeus que enviaram seus antigos arsenais à Ucrânia como forma de apoio.

Assim, o Ocidente está insatisfeito por não ter conseguido infligir total destruição sobre a Rússia, mas de modo algum estão decepcionados com o fracasso das sanções e do “isolamento” da Rússia. Os EUA e seus aliados europeus estão ainda mais felizes com a neoliberalização da Ucrânia que, para sustentar a guerra e garantir o tão necessário apoio militar, é cada vez mais dominada pelo capital estrangeiro. Acreditamos que é de grande interesse para o hegemon global explorar esse conflito economicamente, já que ele apresenta uma ótima oportunidade de prejudicar a posição de um inimigo histórico, fortalecer sua influência na região e fomentar sua principal indústria, e seus aliados europeus estão de acordo, pois além de também lucrarem com essa guerra e participarem ativamente dela, já sabotaram tentativas de paz anteriores. Guerras são simplesmente muito lucrativas, especialmente quando são travadas com suas armas em outros países por outras populações.

Notas de fim

[i] Medida que deixa de lado as leis civis e coloca em vigor as leis militares, geralmente comunicada em cenários de guerra. 

[ii] Centro político e histórico da Rússia.

[iii] Conflito entre o governo ucrâniano e as repúblicas separatistas do Donbass, especialmente Donetsk e Luhansk, iniciado em 2014 e que foi sucedido pela invasão russa de 2022.

[iv] Política expansionista e colonial adotada pela Alemanha Nazista.

[v] Estratégia militar que prioriza a eliminação do comando oponente.

[vi] É importante também destacar o uso de grupos mercenários, como o infame Grupo Wagner, durante esses combates.

[vii] Aproveitamento de guerra (tradução livre).

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