As novas eleições venezuelanas e seus possíveis desdobramentos para as relações Brasil-Venezuela.

Larissa Silva Ferreira

Pedro Guimarães

Resumo

Desde 2013, a Venezuela passa por crises políticas e institucionais que têm deteriorado ainda mais a democracia do país. Após uma série de negociações entre governo e oposição, foi decidido em diálogos com intermediação internacional, que eleições presidenciais com a participação da oposição irão ocorrer no segundo semestre de 2024. No entanto, com o recém impedimento de participação ao pleito pela líder da oposição, as críticas ao governo Maduro retomaram, inclusive pelo Governo Lula, que manteve apoio a Maduro. O presente artigo busca recapitular a crise venezuelana e apresentar as recentes tentativas de avanço a normalização política do país, bem como a importância do Brasil para a resolução da questão.

Introdução

A Venezuela tem, desde 2013, passado por uma grave crise socioeconômica, política e humanitária, tendo como ponto importante a acirrada disputa eleitoral do sucessor político de Hugo Chávez, Nicolás Maduro, contra o candidato do partido Primeiro Justiça, Henrique Caprilles. O primeiro mandato de Maduro ocorreu em contexto de emergência da recessão econômica no país devido à queda internacional do petróleo em 2014. Durante o primeiro mandato, Maduro enfrentou diversos protestos populares e, em 2015, a oposição ao chavismo[1] assumiu pela primeira vez em vinte anos a maioria na Assembleia Nacional, aprofundando o impasse político no país. Em 2018, o então presidente foi reeleito para um novo mandato de 6 anos em meio a contestações do processo eleitoral tanto no plano doméstico quanto internacionalmente. Em janeiro de 2019, a Assembleia Nacional (AN) declarou ilegítimas as eleições e o então líder da oposição e da AN, Juan Guaidó, declarou-se presidente interino do país [2], recebendo inclusive apoio dos Estados Unidos, Canadá, países da União Europeia, da Organização dos Estados Americanos e do Grupo de Lima [3]. Maduro, por sua vez, manteve apoio das forças armadas do país, foi internacionalmente apoiado pela China e Rússia e se mantém até os dias de hoje no governo (CFR, 2024).

Para compreender a crise venezuelana bem como o interesse internacional na questão, é importante delinear a dimensão estrutural da crise. A Venezuela possui uma das maiores reservas de petróleo do mundo, e a consolidação do petróleo como força motriz da economia do país contribuiu para a queda do investimento no setor agrário e no desenvolvimento da indústria ao longo do século XX (Pedroso, 2020), levando, dessa forma, à especialização produtiva e à dependência de importação de bens de consumo. Nesse sentido, ainda que a entrada de divisas pela venda do petróleo tenha sido a responsável por financiar obras de infraestrutura, de seguridade social e para a importação de bens e produtos básicos para o país, com a queda internacional do preço do barril em 2014, somado à  sequência de sanções à produção e ao comércio do petróleo venezuelano, e dos bloqueios aos ativos financeiros impostos pelos Estados Unidos, a Venezuela adentrou em uma grave crise, com repercussões nos países fronteiriços, principalmente pelos fluxos migratórios.

Desde 2017 o país sofre os efeitos da hiperinflação, com a desvalorização rápida da moeda e com o desabastecimento de bens de primeira necessidade para a população, como alimentos e medicamentos, resultando em uma crise migratória, com grande parcela da população em busca por refúgio nos países fronteiriços. Países como Chile, Colômbia e Equador receberam cerca de 5 milhões de venezuelanos em suas fronteiras, enquanto que o Brasil recebeu 400 mil venezuelanos (Montanini, 2023).

Situação atual

Em decorrência da invasão russa à Ucrânia em 2022 e das sanções econômicas impostas à Rússia pelos membros da OTAN, que incluem a proibição de importação de petróleo do país, uma crise energética e inflacionária na Europa e Estados Unidos foi provocada. Para contornar a situação, iniciou-se um movimento por parte do governo Biden para tentativa de normalização das relações com a Venezuela, e para a retomada da importação de petróleo do país como alternativa ao petróleo russo, em troca da retirada das sanções econômicas impostas ao país durante o governo Trump. Em 5 de março de 2022, uma delegação estadunidense se encontrou com o governo de Maduro e, oficialmente, foi discutido no encontro a liberação de cidadãos americanos presos na Venezuela, além da retomada das negociações entre governo venezuelano e a oposição do país (Charleaux, 2022).

As negociações em questão foram iniciadas no México, com mediação da Noruega e em novo encontro realizado em outubro de 2023, em Barbados, chegou-se a um acordo para realização de eleições presidenciais, para ocorrerem no segundo semestre de 2024. Os termos do acordo incluíam eleições justas, com a participação dos partidos opositores (que em eleições passadas se recusaram a participar, em uma espécie de ‘boicote’), transparentes e com a presença de observadores internacionais (El País, 2023). Em decorrência do acordo, os Estados Unidos retiraram temporariamente algumas das sanções ao petróleo, gás e ouro venezuelano, havendo ainda a troca de prisioneiros entre os dois países durante o ano de 2022 (BBC, 2023).

Em outubro de 2023, deu-se início às primárias, em que a opositora do governo, a ex-deputada Maria Corina Machado venceu com mais de 90% dos votos válidos para concorrer nas eleições presidenciais contra Maduro. No entanto, a Suprema Corte do país declarou, em janeiro de 2024, a inegibilidade política da candidata por quinze anos, sob justificativa de participação de Machado na conspiração liderada por Juan Guaidó para assumir a presidência e por defender a aplicação de sanções econômicas contra o país (Carta Capital). Diante desse quadro, Machado anunciou, em 22 de março, a indicação da professora Corina Yoris como sua substituta para o pleito, mas a nova candidata também não conseguiu registrar sua candidatura no sistema da comissão eleitoral e diante disso, a Plataforma Unitária Democrática, – coalizão opositora ao governo -, por fim, registrou provisoriamente o Embaixador Edmundo Gonzalez. Mas outro candidato que se tornou destaque após a preferida ter sido desqualificada foi Manuel Rosales, governador da região de Zulia, e ex-candidato à presidência em 2006 contra Hugo Chávez (Montanini, 2024). 

A posição do Brasil diante desse cenário

Diante desse quadro, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil emitiu, em 26 de março de 2024, uma nota de preocupação com a situação política da Venezuela, destacando a falta de explicação oficial para o impedimento da candidata indicada pela chapa Plataforma Unitária, o que não seria compatível com os acordos de Barbados. Em resposta, o chanceler venezuelano, Yvan Gil, criticou o Brasil, acusando o pronunciamento de ser intervencionista e de parecer “ter sido ditado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos” (Nexo, 2024). Em contramão da posição tradicionalmente adotada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criticou, pela primeira vez, de forma direta o governo Maduro, também pela ausência da principal opositora nas eleições de 28 de julho de 2024 (Nexo, 2024).

As relações político-diplomáticas entre os dois países são caracterizadas por Cervo, (2001), como cooperativas durante o século XX e convergentes desde a ascensão do Presidente Chávez na Venezuela, em 1999, e do Presidente Lula no Brasil em 2002. Ambos de esquerda, os líderes promoveram, ao longo da primeira década dos anos 2000, projetos políticos de integração regional, representados pela Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) e pela União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), que buscavam sobretudo autonomia da região, sendo os dois projetos, nesse sentido, concorrentes mas não necessariamente divergentes na busca pela liderança regional, havendo ainda, no período, crescimento das relações econômicas e comerciais (Pedroso, 2015). Nesse sentido, a despeito de todas as críticas que Chávez recebia internacionalmente, Lula manteve o apoio e a parceria estratégica com o líder venezuelano, que se estendeu posteriormente ao sucessor de Chávez, Nicolás Maduro.

A deterioração das relações entre Brasil e Venezuela iniciou-se, principalmente, durante o governo Temer (2016-2018). Em decorrência dos intensos protestos ocorridos em 2017 na capital Caracas, que levaram à morte de 127 pessoas, o Brasil defendeu a suspensão definitiva da Venezuela do Mercosul, e em resposta, o governo de Maduro expulsou o embaixador brasileiro Ruy Pereira do país. No governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), o tensionamento na relação entre os dois países foi agravada principalmente pelo antagonismo ideológico entre os dois presidentes, com Bolsonaro utilizando ainda durante a campanha eleitoral a expressão “o Brasil vai virar Venezuela” de maneira pejorativa, para ganho de capital político. Já como presidente, Bolsonaro reconheceu o presidente da Assembleia Nacional Juan Guaidó como representante legítimo do país e em seguida as relações diplomáticas entre os dois Estados foram rompidas, sendo restabelecidas no terceiro governo Lula (Montanini, 2023).

A retomada das relações diplomáticas entre os países é importante para ambos os governos. Do ponto de vista econômico, durante os dois primeiros governos Lula, o Brasil foi um dos principais parceiros comerciais da Venezuela, sendo um dos principais fornecedores de alimentos ao país, algo que se modificou em decorrência tanto da crise venezuelana quanto da crise econômica brasileira em 2015 (Pedroso, 2015; Montanini, 2023). A sinalização de normalização das relações bilaterais é marcada principalmente com o encontro dos dois mandatários em maio de 2023, através da cúpula com 11 chefes de Estado da América do Sul, em que Lula defendeu a legitimidade de Maduro como presidente do país (Após quase oito anos,… 2023).

No que se refere à política internacional, percebe-se durante o governo Lula o retorno a uma política externa que busca retomar a liderança do Brasil na América do Sul, através da participação ativa na resolução dos conflitos regionais. No entanto o que se percebe, principalmente diante da situação venezuelana, é um papel mais restrito, não apenas porque reflete um dos princípios basilares da política externa do Brasil que se refere a não interferência em assuntos de natureza doméstica de outros países, mas também a posição do governo Lula que possui relativa proximidade com o governo Maduro. A posição pouco crítica do Brasil, por outro lado, abre ainda mais margem para maiores tentativas de interferência estrangeira na questão, havendo nesse sentido perda do protagonismo do Brasil como um ator capaz de promover estabilidade e soluções pacíficas de controvérsias na região.

Considerações finais

O Brasil, enquanto potência regional, desempenha papel importante como mediador nos conflitos sul-americanos, papel esse que foi relegado durante o governo Bolsonaro e é retomado no terceiro governo Lula. A normalização da política venezuelana é importante para a estabilidade regional e de grande interesse da diplomacia brasileira para a promoção dos interesses brasileiros na região e para se evitar a ingerência de potências externas, principalmente por parte dos Estados Unidos. A condução do governo Maduro no processo eleitoral, por outro lado, associado à falta de comprometimento com os acordos de Barbados, afasta ainda mais a possibilidade de retirada dos embargos econômicos e de um acordo duradouro com a oposição para estabilização da Venezuela.

Ainda que grande parte da situação humanitária e econômica na qual se encontra hoje a Venezuela é em grande medida consequência dos embargos unilaterais promovidos pelos Estados Unidos, é inegável também a responsabilidade do governo atual, que escalou em processos que são considerados como autoritários. A realização de eleições baseadas nos acordos realizados em 2023 é importante para que o isolamento diplomático do país diminua e nesse sentido, uma resposta duradoura à crise possa ser construída.

REFERÊNCIAS

BBC. EUA retiram sanções ao petróleo da Venezuela: entenda acordo que levou à decisão. 19 OUT. 2023. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51jr5pr9d1o> Acesso em: 07 abr. 2024.

CARTA CAPITAL. Suprema Corte da Venezuela confirma a inelegibilidade de María Corina Machado. 26 jan. 2024. Disponível em:<https://www.cartacapital.com.br/mundo/suprema-corte-da-venezuela-confirma-a-inelegibilidade-de-maria-corina-machado/> Acesso em: 07 abr. 2024.

CERVO, Amado Luiz. A Venezuela e seus vizinhos. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro e CARDIM, Carlos Henrique (Orgs.). Venezuela: visões brasileiras: IPRI, 2003. Disponivel em:<https://funag.gov.br/loja/download/257-Venezuela_Visoes_Brasileiras.pdf >

CFR.  Venezuela Crisis. Global Conflict Tracker. Disponível em: <https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/instability-venezuela> Acesso em: 06 abr. 2024.

CHARLEAUX, João Paulo. Como a guerra força a aproximação entre EUA e Venezuela. 14 mar. 2024. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/03/14/Como-a-guerra-for%C3%A7a-a-aproxima%C3%A7%C3%A3o-entre-EUA-e-Venezuela&gt; Acesso em: 07 abr. 2024.

DW. Após quase 8 anos, Maduro visita o Brasil e encontra Lula. 29 mai. 2023. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/ap%C3%B3s-quase-8-anos-maduro-visita-o-brasil-e-encontra-lula/a-65764864> Acesso em 08 abr. 2024.

G1. “É grave” diz Lula sobre candidata da oposição barrada de concorrer às eleições na Venezuela. 28 mar.2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/28/lula-comenta-eleicoes-venezuela.ghtml> Acesso em 10 abr.2024.

MATOSO, Felipe. Além do Brasil, outros 11 países manifestam preocupação com eleições na Venezuela. 27 abr.2024.G1. Disponível em : <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/27/alem-do-brasil-outros-paises-manifestam-preocupacao-com-eleicoes-na-venezuela.ghtml> Acesso em: 10 abr.2024

MONTANINI, Marcelo. A retomada de relações entre Brasil e Venezuela. 22 jan. 2024. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/01/22/a-retomada-de-relacoes-entre-brasil-e-venezuela> Acesso em: 08 abr. 2024. 

MONTANINI, Marcelo. Por que a ilusão de uma eleição justa durou pouco na Venezuela. 27 mar. 2024. Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/03/27/politica-eleicao-presidente-venezuela-2024-oposicao> . Acesso em : 06 abr.2024

NEXO. Itamaraty cita ‘preocupação’ com eleições da Venezuela. 26 mar. 2024. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/extra/2024/03/26/itamaraty-eleicoes-venezuela-opositora-impedida> Acesso em: 07 abr. 2024.

NEXO. ‘É grave’, diz Lula sobre candidata barrada na Venezuela. 28 mar. 2024.  Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/extra/2024/03/28/lula-critica-eleicoes-venezuela> Acesso em: 07 abr. 2024.

O GLOBO. Venezuela : Não podemos abrir totalmente o champagne” diz Celso Amorim após acordo nas eleições venezuelanas. 19 out.2023.Disponível em : <https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/10/19/venezuela-nao-podemos-abrir-totalmente-a-champanhe-diz-celso-amorim-apos-acordo-sobre-eleicoes.ghtml>. Acesso em: 09 abr.2024

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Notas

[i] Chavismo: é a denominação ao fenômeno politico associado ao ex presidente Hugo Chávez que se caracteriza pelo seu personalismo, discurso nacionalista, antioligárquico e anti-imperialista.

[ii] Juan Guaidó: Apesar do reconhecimento por parte de alguns Estados como os Estados Unidos e alguns países da União Europeia da autoproclamação de presidente interino da Venezuela, Guaidó não possuía apoio popular e, após o fim do mandato como deputado, diversos países retiraram o reconhecimento do parlamentar, que não obteve desde que se proclamou presidente, força institucional para de fato derrubar o governo Maduro.

[iii] No breve governo Temer, o país integrou o Grupo de Lima, agrupamento criado por 14 países da região para tratar da crise venezuelana.

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