Protestos na Geórgia: as tensões crescentes envolvendo a lei dos “agentes estrangeiros”

Joana de Castro Pinelli
Júlio Lima Pinto de Souza

Resumo

Com a recente aprovação de um projeto de lei que visa a regulação de agentes e influências estrangeiras dentro da Geórgia, a atenção global novamente retornou à região do Cáucaso, que mais uma vez é tomada por protestos em sua capital, Tbilisi. No entanto, uma observação mais atenciosa da atual situação georgiana revela que as disputas entre os atores envolvidos vão além do discurso simplista sobre a luta pela liberdade de expressão. Assim, este artigo busca compreender as ações do governo georgiano, assim como os interesses de atores influentes na região, como a União Europeia e a Rússia.

Descontentamento Popular: o novo projeto de lei que gerou os protestos na Geórgia

No dia 14 de maio, o Parlamento da Geórgia aprovou sua nova lei de “transparência da influência estrangeira”. A legislação afirma que entidades sem fins lucrativos, como Organizações não-governamentais (ONGs) e meios de comunicação, que recebem em torno de 20% do seu financiamento do exterior se registrem como “agentes de influência estrangeira”. Caso a lei não seja cumprida, as penalidades podem atingir até 25 mil lari [i], além de multas adicionais de 20 mil lari. O projeto de lei, que foi aprovado por 84 dos 150 deputados votantes, se deu apesar dos protestos que atingiram a capital do país, Tbilisi, nas últimas semanas, que se intensificaram quando milhares de manifestantes entraram em confronto com a polícia na parte externa do prédio do parlamento após o anúncio da aprovação, enfrentando gás lacrimogêneo e canhões de água.

A nova lei, inicialmente proposta no ano passado pelo partido Georgian Dream (GD), que já está no poder há 12 anos, foi retirada após uma reação massiva da população. No entanto, foi reintroduzida em março deste ano, semanas depois que Irakli Kobakhidze, do partido GD, venceu as eleições e se tornou primeiro-ministro. Desta vez, os parlamentares pareciam dispostos a aprovação da lei – que atualmente foi ratificada – , uma vez que é o GD, junto com seus aliados, que controla o parlamento. Com a reintrodução do projeto, os protestos se intensificaram ao longo do mês de abril, que foram marcados por repressões severas e prisões por policiais de choque, gerando mais críticas e aprofundando as divisões no país, contribuindo para um cenário de alta polarização.

Dessa forma, o governo da Geórgia justifica a necessidade do projeto de lei para promover transparência, combater influências estrangeiras que promovem “valores pseudo-liberais” e preservar a soberania nacional. O ex-primeiro-ministro e bilionário Bidzina Ivanishvili, fundador do partido GD, que governa o país desde 2012, acusa as ONGs de serem marionetes dos interesses estrangeiros e de conspirarem para uma revolução. O atual primeiro-ministro do país, Kobakhidze, também é um defensor do projeto e argumenta que a não aprovação dele resultaria na perda da soberania georgiana.

O governo da Geórgia opera sob um sistema parlamentar com a presidente Salome Zourabichvili e o primeiro-ministro, Kobakhidze. Assim, Zourabichvili, em uma entrevista à CNN, apelidou a legislação de “duplicação exata” do projeto de lei da Rússia, alegando que é uma ameaça à democracia da Geórgia, além de defender as manifestações adotando um discurso europeísta. A presidente vetou o projeto de lei, citando a sua incompatibilidade com a constituição, porém sua decisão pode ser desconsiderada por meio de uma maioria simples no parlamento, que é controlado pelo partido governante GD e seus aliados. A Geórgia possui eleições parlamentares em outubro deste ano, onde o partido governante GD espera garantir a maioria. Porém, o governo teme que organizações possam influenciar o resultado da votação, considerando que, se os partidos da oposição se unirem, será mais um obstáculo à vitória do GD.

O balanço de poder devido à posição estratégica georgiana e seus laços com a Rússia e a Europa

A Geórgia se encontra em um ponto de encruzilhada de impérios, culturas e civilizações, nominalmente a russa e a turca. Como consequência disso, sua população é em tempos considerada muito asiática para ser europeia e, simultaneamente, europeia demais para ser de fato asiática. Esse dilema é utilizado de acordo com os objetivos das agendas políticas das forças que atuam dentro do país e que atualmente é mais uma vez instrumentalizado em um discurso para promover a aproximação com a Europa, no qual supostas características georgianas não-ocidentais, especialmente tudo aquilo que remete ao passado soviético ou aos seus laços com a Rússia, é visto como retrógrado e autoritário.

Servindo como uma porta de acesso às riquezas naturais do Mar Cáspio, especialmente hidrocarbonetos que são transportados para a Europa a partir de dutos que cortam o país, a Geórgia é estratégica para o Ocidente. Além disso, ela representa um posto avançado ocidental na fronteira entre a Ásia e a Europa, por meio do qual podem estender sua influência na região, atingindo principalmente a Rússia, como fazem, em momentos de maior e menor intensidade, desde a década de 1990 através da fomentação de movimentos nacionalistas e da penetração na política interna do país do Cáucaso. Segundo Fabiano Mielniczuk, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio, esses fatores criaram um falso senso de apoio ocidental dentro da Geórgia e encorajaram a belicosidade em seus políticos que, principalmente após sua independência, se preocuparam em construir uma nova identidade nacional a partir da negação de tudo atrelado ao seu passado soviético ou à Rússia, sentimentos que somente se exacerbaram após a guerra com a Rússia em 2008.

Desde sua independência da União Soviética em 1991 e a consequente restauração capitalista, a Geórgia teve sua política interna atrelada aos interesses ocidentais como uma forma de demonstrar lealdade e conformidade ao zeitgeist [ii] neoliberal. Isso fez com que o país se tornasse um laboratório de testes para os programas das ONGs [iii] internacionais. Contudo, elas passaram a desempenhar um papel importante na política georgiana a partir da Revolução Rosa [iv] de 2003. Essas ONGs, apesar de envolverem atores locais, são majoritariamente financiadas por doadores internacionais, principalmente com capital ocidental, e possuem bastante influência sobre a população do país. Elas atuam principalmente em áreas onde o governo é insuficiente ou então em setores que ele é mais do que feliz em relegar, cada vez mais, para a iniciativa privada, independente das consequências para a população.

Conforme Sopiko Japaridze, jornalista e ativista trabalhista georgiana, essa penetração por parte de ONGs estrangeiras minou a agência da população, assim como a soberania e a democracia do país, pois elas atuam como promotoras de interesses ocidentais dentro da política e sociedade georgiana. No entanto, a proposição da nova lei que regula essas agências não é intencionada para sanar esses problemas. O GD aparenta não se importar com essa penetração, especialmente com a entrada de capital estrangeiro e a criação de políticas as quais os políticos governistas não discordam, afinal eles estão unidos em favor de uma tecnocracia neoliberal despolitizada.

Esse atual sentimento antigoverno demonstrado pelos protestos, em adição à russofobia e ao falso senso de apoio ocidental, assim como no passado, é promovido paralelamente ao nacionalismo georgiano, o que poderia colocar as populações das repúblicas separatistas da Abecásia e Ossétia do Sul como alvos novamente, instigando uma nova intervenção por parte da Rússia, que se colocou como a guardiã da independência dessas regiões. Contudo, uma nova frente de conflito provavelmente não seria de interesse do governo russo, pois além de estar ocupado com sua guerra na Ucrânia, também não quer prejudicar seus atuais laços econômicos com a Geórgia.

Implicações da Lei de Agentes Estrangeiros na jornada da Geórgia rumo a União Europeia

Mesmo após a clara mensagem enviada pela Rússia em 2008 de que não aceitaria a expansão, tanto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) quanto da União Europeia (UE), tão próxima de seu território, o atual governo georgiano, que mantém relações cordiais com Moscou, também não abandonou os sonhos de ascensão à UE, o que apresenta um incômodo para sua vizinha eslava. A Geórgia candidatou-se em 2022 para fazer parte do bloco juntamente com a Ucrânia e a Moldávia, e obteve o status de candidata em 2023. Logo depois, os líderes do bloco concederam o status formal de candidato a Kiev e Chisinau, mas declararam que Tbilisi teria que implementar uma série de reformas antes de ser membro. Para que um país seja aceito dentro do bloco, ele precisa se adequar às exigências vindas de Bruxelas, seguindo uma cartilha neoliberal.

Durante a aprovação do novo projeto de lei pelo Parlamento da Geórgia, a UE, a Organização das Nações Unidas (ONU) e os Estados Unidos condenaram a legislação, expressando suas discordâncias após o governo georgiano comparar a nova lei com legislações de transparência aprovada nos países ocidentais, como a Lei de Registro de Agentes Estrangeiros nos Estados Unidos – usada para limitar a influência estrangeira no país relatando suas atividades a uma agência federal e ela não se limita apenas as ONGs ou meios de comunicação social, mas também aos indivíduos. Assim, evidencia-se uma contradição quando os próprios países ocidentais possuem planos de aprovar projetos de lei de influência estrangeira, ou já possuem formalizado, ao mesmo tempo que fazem declarações condenando a legislação proposta na Geórgia. Dessa forma, a adoção da lei georgiana ocorreu mesmo diante dos alertas da UE sobre os possíveis impactos negativos dessa aprovação na candidatura do país georgiano ao bloco.

Nesse viés, a oposição acusa o atual governo de adotar tendências autoritárias e encara o novo projeto como uma tentativa de restringir a liberdade de imprensa e a sociedade civil, comparando-o a uma lei russa, em que as organizações que possuem alguma forma de “influência estrangeira”, são declarados “agentes estrangeiros”. Nesse sentido, sustentando a visão ocidental e anti-Rússia, a legislação proposta é extremamente impopular, salientando os cerca de 50 mil manifestantes reunidos em Tbilisi somente no domingo (12), sendo dominada pela geração mais jovem do país. 

Além disso, a comunidade internacional também expressou sua opinião sobre a nova proposta. Os EUA aconselharam a Geórgia a não avançar com a medida, alertando que isso poderia prejudicar seu objetivo declarado de aderir à UE e de fortalecer laços com a OTAN. Países da UE como Itália, Alemanha e os Países Bálticos também criticaram o projeto de lei e pediram que a Geórgia anulasse a lei, destacando que ela pode minar as aspirações do povo georgiano de viver em uma democracia avançando em direção à UE e à OTAN. Em contrapartida, o Kremlin [v] nega ter tido qualquer influência no projeto de lei georgiano e afirma que a crise é um assunto interno do país, acusando o ocidente de intromissão.

Assim como o Ocidente uma vez estendeu a possibilidade de membresia em suas fileiras para população georgiana em 2008, com resultados catastróficos, ele novamente estende o convite ao país, reacendendo as esperanças de uma população desolada por 30 anos de neoliberalismo e que enxerga a entrada na UE como uma solução para as suas condições materiais. Apesar de não banir a atuação de ONGs no país, a aprovação da nova lei certamente desacreditaria a suposta legitimidade e neutralidade delas, desagradando a UE e prejudicando seus projetos para a região. Como consequência disso, a nova lei encontra resistência interna, como foi previamente mencionado, pois ela é vista por setores da população como um desvio da tão desejada candidatura à UE e uma rendição à influência russa.

Notas de fim

[i] Moeda oficial da Geórgia

[ii] Espírito da época.

[iii] Atualmente, mais de 25.000 ONGs operam dentro da Geórgia, das quais 90% recebem financiamento externo, com a vasta maioria não recebendo nenhum financiamento local.

[iv] Movimento político que ocorreu na Geórgia em 2003 marcado por uma série de protestos pacíficos e manifestações que resultaram na renúncia do então presidente Eduard Shevardnadze. Após a renúncia, Mikhail Saakashvili tornou-se o novo presidente da Geórgia e iniciou uma série de reformas políticas e econômicas no país.

[v] Governo Russo.

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