A Lei Ônibus e cenário socioeconômico da Argentina: o impasse entre políticas ultraliberais e a pobreza no país

Amanda Ribeiro Silva
André Luís Norvino da Cruz

Resumo

Com a aprovação da Lei Ônibus na Câmara dos Deputados na Argentina, o pacote ultraliberal do presidente Javier Milei caminha em direção ao Senado antes que seja aprovado. Porém, vista a atual situação econômica argentina, marcada pelo alto índice de pobreza, esta lei enfrentou críticas e resultou em uma greve geral, refletindo a insatisfação popular, o que levanta questões sobre os impactos das políticas neoliberais apoiadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O presente artigo busca compreender a relação das políticas liberais propostas pelo presidente, o cenário socioeconômico argentino e o que o financiamento do FMI pode representar nas relações do país com os Estados Unidos.

As discussões da Lei Ônibus e as repreensões da população

Lei Ônibus(i) proposta pelo governo do atual presidente da Argentina, Javier Milei, foi aprovada pela Câmara dos Deputados no dia 30 de abril, e agora segue para o Senado para ser discutida antes de ser aprovada. Essa proposta tinha sido apresentada pelo presidente em dezembro de 2023, mas sofreu alterações para que pudesse ser aprovada. A lei prevê medidas como a privatização de empresas públicas, eliminação da moratória previdenciária, um pacote fiscal, uma reforma trabalhista, além de conceder poderes especiais ao governo executivo. Frente a isso, a população mobilizou uma greve geral, iniciada no dia 09 de maio, na qual os trabalhadores estão paralisando e restringindo os serviços de todos os tipos de meios de transporte, de instituições financeiras, educacionais e comerciais em todo o país, em forma de protesto contra a proposta em votação.

Conhecida oficialmente como Lei de Bases, a Lei Ônibus, trata do pacote de medidas ultraliberais mais profundo de reformas, dos que foram apresentados por Milei em seu “megadecreto” no início de seu mandato, contendo cerca de dois terços de todas as reformas propostas. Originalmente a lei contava com mais de 660 artigos que previam medidas que garantiriam poderes especiais ao presidente para reformular diversas áreas, como impostos, saúde, segurança e defesa, e a duração desses poderes duraria por um período de dois anos, mas que o Executivo poderia estender por mais dois, que seria a duração de todo o mandato de Milei. Porém, para que houvesse a aprovação do pacote de regras, o governo realizou concessões e a lei foi reduzida pela metade. 

Com isso, restaram quase 380 artigos, dentre esses o que se destaca é o artigo que pede a declaração de “emergência pública” em questões financeiras, econômicas, tarifárias, energéticas, administrativas e, também, a permissão para que o presidente reorganize, crie ou dissolva entidades públicas ligadas ao Executivo. Mas com a redução do prazo de duração do estado de emergência pública para um ano. Na reforma trabalhista presente no texto consta a flexibilização de contratações por parte das empresas, como ampliar o tempo de experiência de novos funcionários para seis meses e com a possibilidade de se estender em até um ano para microempreendedores. Além do estabelecimento do Regime de Incentivos aos Grandes Investimentos (Rigi), que busca oferecer incentivos fiscais para investimentos acima de US$200 milhões em diversos setores e a possibilidade de privatização de empresas estatais, como a companhia aérea Aerolíneas Argentinas. Isso desperta preocupação já que possibilita a concentração de alguns poderes nas mãos do presidente.

A reconstrução da economia argentina no cenário pós-Covid 19 e o desafio da pobreza

A Argentina já foi uma das  maiores economias no século XIX, tendo um PIB impulsionado pela exportação de commodities, entretanto, o século seguinte é marcado por crises sistemáticas na economia argentina. Nesse sentido, a instabilidade de políticas econômicas, que oscilaram entre o nacionalismo e o neoliberalismo, o protecionismo e o livre mercado, tanto entre diferentes governos quanto dentro do mesmo partido, tem sido um fator agravante dificultador do desenvolvimento econômico do país. Além disso, a falta de diversificação econômica da Argentina, fortemente dependente de produtos primários, torna o país vulnerável a choques externos, como variações nos preços das commodities e flutuações na demanda global.  

Em 2020, a chegada da Covid-19 e as restrições impostas durante a pandemia trouxeram um impacto significativo na estrutura do país, trazendo novos desafios para a já fragilizada economia argentina, exacerbando o alto índice de pobreza. Não somente a Argentina, mas a América Latina, já afetada pela desigualdade, não escapou dessa tendência, testemunhando aumentos em suas taxas nacionais de pobreza. Além da alta da inflação, houve um aumento na pobreza no Estado argentino, como pode ser visto no Gráfico 1, onde os números, que já estavam em crescimento, chegaram na casa dos 30% em 2017, durante o governo de Mauricio Macri. Enquanto que em 2021, segundo o Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC) após um ano do início da pandemia, a pobreza já apresentava números recordes no país, atingindo cerca de 42% da população total. 

Gráfico 1: A pobreza e a inflação na Argentina (2017, 2021 e 2024). 

Fonte: Indec, 2024.

De acordo com a CEPAL, a pandemia da Covid-19 alertou para uma “crise prolongada” na América Latina, com 56,5 milhões de pessoas sofrendo de fome e 45,4% das pessoas com 18 anos ou menos vivendo na pobreza. Embora a reabertura do turismo e a demanda reprimida tenham impulsionado a economia e recuperado empregos em 2022, desafios como o abrandamento do crescimento global e a inflação persistem, especialmente na Argentina. O conflito na Ucrânia agravou a situação, com a escassez de fertilizantes e o aumento do preço do trigo intensificando a crise alimentar e a inflação, impactando negativamente o poder de compra dos consumidores argentinos. A dependência do país em relação ao preço de commodities pesou na balança e a população mais pobre foi quem pagou pelo fato. 

A chegada de Javier Milei ao poder, reflete uma tendência mundial visto também na política argentina, onde candidatos “outsiders(ii) têm conquistado posições de liderança, impulsionados pelo descontentamento popular com as elites políticas. O ultraliberal, ao assumir a presidência da Argentina, trouxe consigo um discurso contundente, enfatizando a necessidade de um “choque” econômico para enfrentar os desafios iminentes do país. Visando a reconstrução da economia argentina, Milei apresentou propostas ultraliberais, como a dolarização da moeda e revisões legislativas, que buscam privatizar setores do governo. Contudo, enquanto o ultraliberal busca reformas radicais, o  impacto negativo sobre os mais vulneráveis é preocupante e gera intenso debate político e social. 

Desde o início do mandato de Javier Milei, em 10 de dezembro de 2023, o objetivo do governo era controlar a inflação e diminuir os gastos públicos. A dúvida que paira é se Milei irá conseguir, mesmo que à revelia da desigualdade, como já está fazendo. Cortes nas contas públicas foram feitos e algo que não acontecia no país há mais de uma década, ocorreu: o Ministério da Economia anunciou “contas públicas no azul”, conseguindo arrecadar mais do que gastou. Surpreendente, porém, explicável pelas políticas radicais de Milei. O resultado disso foi o aumento da pobreza na Argentina, especialmente entre a classe média e os aposentados, ultrapassando 57% de toda a população argentina. O presidente afirma que há preocupações com os mais necessitados e que ações estão sendo tomadas, porém, ainda há incerteza sobre a eficácia dessas medidas para mitigar os impactos do ajuste econômico. 

Aproximação com o FMI e o estreitamento de relações com os Estados Unidos 

As políticas do presidente Javier Milei relembram a gestão de Mauricio Macri, que buscou seguir as condicionalidades impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para que um acordo econômico fosse firmado. Durante as dificuldades fiscais de 2018, a Argentina fechou um acordo com o Fundo Monetário Internacional no valor inicial de U$50 bilhões para controlar a crise que o país se encontrava. O acordo é o maior já firmado entre a Argentina e o FMI, porém, o país enfrentou dificuldades em cumprir suas obrigações devido à sua frágil economia e recorrentes crises financeiras. Desse modo, o governo de Macri deveria estabelecer algumas medidas liberais na economia para conter a crise cambial e inflacionária que assolava a economia argentina.  

No entanto, devido à instabilidade econômica, alta inflação e recessão prolongada durante a pandemia, a Argentina encontrou dificuldades significativas em cumprir as condições e prazos estabelecidos pelo FMI. Em 2020, a situação tornou-se insustentável, levando o governo argentino a buscar uma renegociação do acordo. A crise sanitária do coronavírus corroborou com a conjuntura já abalada da economia do país, fazendo com que Alberto Fernández buscasse renegociar a dívida, porém, preocupando-se com o social. O ciclo de endividamento público remonta a governos militares, mas vê em 2024 a solução liberal de Milei, que pouco preocupa-se com a população mais vulnerável.  

No fim de seu governo, Fernandéz novamente entrou em contato com o Fundo para negociar as dívidas passadas, resultando no desbloqueio de US$7,5 bilhões em 2023. O “acordo inicial” novamente era composto por medidas visando cortar os gastos públicos e que desvalorizam a moeda nacional, esbarrando no discurso político do presidente argentino, que buscava equilibrar as contas públicas sem esquecer da população em pobreza. Já em 2024, com o sucessor de Fernández, Milei, a negociação é baseada no “conserto” das metas traçadas no ano anterior. A Lei Ônibus e outras medidas como o plano “Motosserra(iii) são vistas como uma solução para o problema argentino, mas de todas elas, lidar com o fato de que a Argentina com 57% da população na pobreza, não é um foco. O que pode ser visto pelo descontentamento da população com a greve geral. 

Após a aplicação de algumas dessas políticas econômicas, o país conseguiu obter um resultado melhor do que o esperado no primeiro trimestre deste ano, segundo o FMI, como déficit zero e um superávit de US$580 milhões. Mas, esses resultados são obtidos a partir do corte de gastos essenciais para o Estado. Com o reconhecimento do órgão financeiro, uma equipe sua e autoridades argentinas chegaram a um acordo sobre a revisão do acordo de financiamento estendidopara US$44 bilhões. Isso mostra um estreitamento das relações com os Estados Unidos, sendo um dos principais pilares da política externa do governo de Milei. O que remete à sua visão de mundo atual onde há uma ordem bipolar, refletida pela disputa de poder entre EUA e China, e claramente escolhe o lado norte-americano, se afastando de um de seus principais parceiros comerciais, já que “não vou fazer negócios com a China, como não vou fazer negócios com nenhum comunista”. 

O distanciamento com a China fomenta ainda mais as relações do país com os EUA pois além de ter apoio do FMI, também conta com o apoio de Donald Trump, um dos candidatos à corrida presidencial dos EUA, e caso Trump consiga se eleja novamente, esses laços possivelmente se aprofundarão mais. Todavia, tendo em vista o atual cenário socioeconômico argentino, isso pode intensificar ainda mais a relação de dependência(iv) do país. Ou seja, um empecilho para que o Estado consiga se desenvolver, pois além de já contar com um índice de pobreza elevado e inflação extremamente alta, se volta ao Norte global para tentar solucionar seus problemas, mas no fim acaba se endividando com tantos financiamentos.

Notas de fim

(i): O nome da lei vem da expressão do latim “omnibus” que significa “para todos os fins”. 

(ii): De acordo com Rodríguez Andrés, os “outsiders” são candidatos eleitorais que, vindos de fora do sistema e sem experiência política, posicionam-se à margem das regras estabelecidas para criticar a classe política tradicional e se retratar como agentes de mudança. Apesar de sua postura anti política e de muitas vezes enfrentarem forças contrárias, conseguem transformar suas campanhas em fenômenos virais que os levam a vitórias inesperadas. 

(iii): Corte dos gastos públicos, redução de ministérios e secretarias, além de cortar subsídios e despesas com publicidade institucional e paralisou novas obras públicas. Ademais, houve uma desvalorização do peso frente ao dólar, diminuindo o poder de compra da população, e redução dos salários e obras públicas e dos subsídios econômicos.

(iv): O pensamento de dependência vem com uma perspectiva da corrente marxista, a teoria da dependência,  um de seus principais expoentes é o economista brasileiro Ruy Mauro Marini. A teoria da dependência surge no contexto latino-americano e sugere que os países pobres enfrentaram diversos obstáculos ao desenvolvimento pois eram vulneráveis à exploração econômica de Estados do Norte global. É entendido que os vínculos entre os países ricos e os países pobres tornavam os pobres mais pobres e os ricos mais ricos, essa condição de algumas partes do mundo é causa do desenvolvimento em outras partes do mundo (p.18).

Esse post foi publicado em Argentina, Crise, crise econômica. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário